quinta-feira, 23 de abril de 2020

Da difícil arte de redigir um telegrama - De Jô Soares

DA DIFÍCIL ARTE DE REDIGIR UM TELEGRAMA
          Há uma história famosa a respeito de uns parentes que tinham que comunicar por telegrama, a uma senhora que estava viajando, o falecimento de uma irmã. Regiu a nota. Depois de alguns minutos mostrou o resultado do seu trabalho: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. TUA IRMÃ MORREU.” Todos leram e um dos tios fez o seguinte comentário:
– Eu acho que não está bom. Afinal de contas, vocês sabem que ela é cardíaca, está viajando e um telegrama assim pode ser um choque.
Todos concordaram, inclusive um outro primo afastado que era meio sovina e achou o telegrama muito longo:
– Depois, o preço que se paga por palavra, isso não é mais um telegrama, é um telegrana.
Ninguém riu do infame trocadilho, mesmo porque, velório não é lugar para gargalhadas. Foi a vez de o cunhado tentar redigir uma forma mais amena que não assustasse a senhora em passeio. Sentou-se e escreveu: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. SUA IRMÃ PASSANDO MUITO MAL.” Novamente o telegrama não foi aprovado. Um irmão psicólogo observou:
– Não sejamos infantis. Se ela está viajando pela Europa e recebe esta notícia, não vai acreditar na história de “passando muito mal”. Sobretudo com “volte correndo” no meio.
– Também concordo – falou o primo afastado sempre pensando no custo. Então o genro aproximou-se:
– Acho que tenho a forma ideal.
Pegou no bloco e rabiscou rapidamente: “INTERROMPA VOAGEM E VOLTE DEVAGAR. TUA IRMÃ PASSANDO MAIS OU MENOS.” Todos examinaram atentamente o telegrama. A filha reclamou:
– Vocês acham que mamãe é boba? Se a gente escrever que a titia está passando mais ou menos e que ela pode voltar devagar, ela vai adivinhar que todas estas precauções são pelo fato de ela ser cardíaca e que na realidade a irmã dela morreu!
– Concordo plenamente – disse o facultativo da família que era também sobrinho da senhora em questão. Resolveu, como médico, escrever o telegrama: “PACIENTE FORA DE PERIGO. VOLTE ASSIM QUE PUDER. PACIENTE TUA IRMÔ.
De todas as fórmulas até então apresentadas esta foi a que causou mais revolta.
– Que troço imbecil – gritou o netinho que passava pela sala no momento em que a mensagem era lida. Puseram o menino para fora da sala, mas no íntimo a família concordava com ele.
– Não, isso não. Se a gente manda dizer que ela está fora de perigo, para que vamos pedir que ela interrompa a viagem? – argumentou o tio.
– Também acho – responderam todos num coro de aprovação. O filho mais velho resolveu tentar. Pensou bem, ponderou, sentou-se, molhou a ponta do lápis na língua e caprichou: “SE POSSÍVEL VOLTE. TUA IRMÃ SAUDOSA. PASSANDO QUASE MAL. POR FAVOR ACREDITE. CUIDADO CORAÇÃO. VENHA LOGO. SAUDADES SURPRESA”.
– Realmente, esse bate todos os recordes! – disse uma nora professora. Em primeiro lugar, não é “se possível”, ela tem que voltar mesmo. Em segundo lugar, “saudosa” tem duplo sentido. Em terceiro lugar, ninguém passa “quase mal”. Ou passa mal ou bem. “Quase mal” e “quase bem” é a mesma coisa. “Por favor acredite” é um insulto à família toda. Ninguém aqui é mentiroso. Depois, “cuidado coração” não fica claro. Como telegrama não tem vírgula, ela pode pensar que a gente está dizendo “cuidado, coração”, já que a palavra coração também é usada como uma forma carinhosa de chamar os outros. Por exemplo: “oi coração, tudo bem?” E finalmente a palavra “surpresa” no telegrama chega a ser um requinte de crueldade. Qual é a surpresa que ele pode esperar?
– Ela pode pensar que a titia está esperando nenê – falou um sobrinho.
– Aos noventa anos de idade?
Abandonaram a ideia rapidamente. Seguiu-se um longo período de silêncio em que a família andava de lá para cá, pensando numa solução. Pela primeira vez estavam se dando conta de que não era tão fácil assim mandar um telegrama. Serviu-se o costumeiro cafezinho, enquanto cada qual do seu lado procurava uma maneira de escrever para a senhora em viagem sem que isto tivesse consequências desastrosas. De repente o irmão psicólogo explodiu num grito eurekiano de descoberta:
– Achei!
Escreveu febrilmente no papel. O telegrama passou de mão em mão e foi finalmente aprovado por todo mundo. Seu texto dizia: “SIGA VIAGEM. DIVIRTA-SE. TUA IRMÃ ESTÁ ÓTIMA.”
(JÔ SOARES. O Globo. 26/10/1975)

A Mulher da Minha Vida - De Daniel Galera

Conheci esse conto do Daniel, sem saber que era dele, por volta de 2002 e nunca me esqueci dessa história, cheguei até mesmo a fazer um curta dessa história, pois o conto é praticamente um roteiro pronto, hoje com bastante tempo, graças a quarentena do coronavírus, reencontrei esse texto em coisas antigas e resolvi publica-lo aqui nesse repositório de textos, claro que dando o devido o crédito ao autor, que agora eu sei quem é.

A MULHER DA MINHA VIDA

Sempre fui feliz ao lado de Helena. Desde que a conheci, faz uns três anos, na festa de uma amiga dela. Naquele primeiro dia já trepamos. Ha haha foi muito maluco aquilo tudo. Uma dúzia de pessoas completamente drogadas e bêbadas, e de repente eu vi ela, linda, ensandecida, escorada na parede com uma long neck na mão, ficamos nos encarando, ela era linda, começou a chupar a long neck como se fosse um caralho. Olhando pra mim. Me apaixonei na hora. Foi nossa primeira noite, faz três anos. 


Quando digo que sempre fomos felizes, falo principalmente de sexo. Sim, porque fora desse aspecto a gente nem se via muito. Dormíamos no mesmo apartamento de um quarto no centro da cidade, mas era só. Ela tinha a vida dela, eu a minha. Ela tinha os trabalhinhos dela numa empresa de design, webdesign essas coisas, aquelas agências moderninhas cheias de bichas, ela era boa naquilo, mexia com computadores e ganhava uma boa grana. Fazia ainda algumas cadeiras de alguma faculdade de Publicidade. Eu estudava Filosofia e não tinha a menor ideia do que faria da minha vida, o que era formidável. Mas o fato é que meu negócio com Helena era foder, a gente era feliz, não que fôssemos infelizes no resto das coisas, mas é que simplesmente não havia o resto das coisas. Ela tinha a vida dela, eu a minha. 


As pessoas sempre falaram muito da gente. Éramos um casal muito bonito, sem dúvida. Isso causava inveja de alguns. Mas nós nunca nos importamos de dividir nossa cama com outros. Quer dizer, outras. Outras mulheres passaram por nossa cama, por nossos tapetes, banheiras e paredes. Helena adorava ter outras mulheres entre nossos lençóis, sobre nosso colchão, entre suas pernas, e eu, obviamente, não me importava nem um pouco. Melhor que uma mulher na cama só duas. Uma delas era Cris, uma pequenina e gostosa estudante de Oceanologia que um dia eu acabei levando para o nosso apê. Helena adorava esta Cristiane pois sua pele era como se feita exclusivamente de pontos erógenos e, além disso, ela tinha orgasmos intermináveis que chegavam a dar medo. Helena divertia-se e ficava fascinada com aquela garota, que desfazia-se em contorções eternas enquanto ela enfiava o punho em seu ventre e eu atacava com gula infantil os seus peitos. 


Mas um dia outra pessoa apareceu para substituir a diminuta e elétrica Cristiane como terceiro elemento de nossas transas. Isso foi três anos depois que conheci Helena, e foi também numa festinha pirada e desvairada que acontecia no apartamento de um amigo. Todo mundo tava chapado de todas as maneiras, e fomos pra cama nós três, eu, Helena e esse tal de Deonísio. 


Mesmo com muito álcool na cabeça, protestei inicialmente contra o desejo de Helena de termos um homem conosco na cama. Eu nunca tinha sequer considerado essa possibilidade. Minha opção sexual sempre foi convicta e inquestionável, eu gosto de buceta. Mas ela insistiu, e pra me convencer bastou ela boquetear a garrafinha de long neck com aquele olhar implorante fixo no meu... bom, quando acabei cedendo o cara já tava pelado mesmo. Então trepamos, os três. 


Como foi? 


Vou resumir. Eu gostei. 


É isso mesmo. 


Eu deitei com um homem na minha cama. Abracei um homem. Beijei um homem. E putaquepariu, eu gostei. Helena adorou aquela experiência, no dia seguinte estava eufórica e afoita, me beijava com histeria e bebia sua cerveja boqueteando a garrafa, tudo estava como sempre. Quis dizer pra ela que pra mim não foi bem assim. Tive medo. Até então existiam limites teóricos para toda a nossa libertinagem, mas eles ruíram. Minhas convicções sexuais ruíram, certezas que me acompanharam por anos sucumbiram a esse desejo inédito, revelado por esse sujeito, Deonísio, que resolveu se enfiar assim entre nós, que diabos, mas o que é pior, o desastroso desta história foi que eu gostei dessa merda toda. 


Como eu disse, Helena adorou aquela foda e convidou esse cara pra aparecer quando quisesse no nosso apartamento. Torci pra que ele não viesse, mas ele veio. Um sujeito inteligente, engraçado, descontraído, desinibido. Tomamos vinho, tequila, martini, falamos de nossas vidas, fumamos maconha, fizemos massagem um no outro, jantamos bolacha recheada e tomamos algumas cervejas pra lavar o estômago. E é claro que acabamos trepando os três novamente. Helena queria, Deonísio queria, e eu? Eu aceitava. 


Mas com o tempo eu parei de aceitar. Passei a desejar. Eu gostava de chupar o pau dele. Gostava de abraçar suas costelas, sentir seu cheiro. A língua dele é tão boa quanto a de Helena, se não melhor. Então era isso, eu estava desejando um homem. Eu sentia vergonha ao transformar meu comportamento sexual de maneira tão abrupta. As pessoas aceitavam e admiravam a uma distância segura as relações que eu e Helena tínhamos com outras mulheres, mas agora era diferente, lançavam a nós olhares inquisitores, ressabiados, que indagavam com surpresa: "Quem diria hein, com um homem?". Eu já não entendia mais nada. Mas como nunca fomos, nem eu nem Helena, do tipo de gente que se preocupa com o que os outros pensam da gente, o Deonísio aparecia às vezes em nosso apartamento, dormia por lá, circulava comigo ou com Helena pelas ruas. E eu fui gostando cada vez mais. 


Um dia sentamos eu e ele pra tomar umas cevas num boteco de esquina e tivemos uma conversa séria. Ele disse que estava apaixonado por mim. Eu disse que era doloroso pra caralho alguém como eu, para quem sexo foi sinônimo de mulher por muitos anos, admitir uma coisa dessas, mas eu também gostava dele. Admiti isso, ele me beijou e fomos embora os dois, embora desta cidade, pra longe de Helena, pra longe das dúvidas e escombros de minhas convicções desmoronadas. 


Olhando o campo pela janela do ônibus eu pensava em Helena, em suas mãos habilidosas, sua boca macia e na maneira que ela bebia as malditas garrafas de cerveja me nocauteando de excitação. O que eu sinto por Deonísio é paixão. Helena, contudo, foi e será para sempre a mulher da minha vida. 


O HOMEM DA VIDA DELA.


Conheci aquela dupla de malucas numa festa que teve no apartamento de um amigo meu. Na verdade eu já conhecia a Helena de vista há algum tempo, já havia cruzado com ela pelos corredores da faculdade de Publicidade umas tantas vezes, só que nunca tinha visto a sua famosa companheira, a Melissa, mas naquela festa ali estavam as duas juntas, abraçadas, faceiras e embriagadas, e pude verificar aquilo que já me haviam dito: essa Melissa era a mais linda e gostosa representante da raça humana sobre a Terra. 


Naquela noite eu contemplava tudo silencioso, com uma lata de cerveja na mão, pensamentos sacanas na cabeça e entregue aos sentimentos de costume. Estava cansado da minha rotina estúpida de estudo e trabalho, cansado do rádio e da televisão, enjoado do meu círculo de amigos e farto das mulheres de quem obtinha nada mais do que concessões de sexo ordinário e rasteiro. Bebia quieto e sozinho, imerso no ar denso de fumaça e som pesado. Foi deste estado de espírito moribundo que a simples visão daquelas duas mulheres lindas me arrancara naquela noite. Pois o negócio é que ver mulher junto com mulher é uma coisa que me excita, e muito. Elas estavam ali, a poucos metros de mim, bebendo, trocando palavras com outros presentes e se agarrando em carícias e beijos vigorosos e duradouros, e eu observava as duas de pau duro o tempo todo, imaginando situações e planejando atitudes pra saciar meu desejo. 


Elas eram um casalzinho conhecido na cidade, não só por serem as duas, além de lésbicas, dolorosamente bonitas, mas também pelo hábito de levarem uma terceira mulher para trepar com elas, isso acontecia muito diziam, mas só mulher, nunca homem. Nunca homem. Será? Será que elas não topariam ir pra cama com um homem? Me ocorreu aquela frase canalha de que é só botar o pau pra fora que elas mudam de ideia. Será que algum já havia perguntado, insistido? Será que uma fêmea tão espetacular como essa Melissa nunca tinha ido pra cama com um cara? Se foi, o que será que esse biltre canalha mau-caráter fez de tão errado para que ela acabasse se refugiando no próprio sexo? Tive vontade de perguntar, e como as coisas se tornam muito mais simples depois que se perde a conta das cervejas, simplesmente me levantei e fui perguntar. 


Me aproximei e me apresentei na cara dura. Oi, prazer, sou Deonísio, tu eu conheço de vista, teu nome é Helena, não é? Ela me cumprimenta com um rápido beijo nos lábios e confirma, sim acertou, eu sou a Helena, ela é bonita, cabelos loiros e rosto impecável, então boto logo os olhos na outra que sei ser a Melissa mas me faço de louco e pergunto o nome dela, e tu? Melissa ela responde, me concedendo nada mais do que um olhar distante e morno, e agora que posso ver ela de perto meu fascínio cresce beirando o limite perigoso de uma espécie de devoção, ela tem cabelos morenos, olhos vibrantes de um verde aguado, a pele um pouco dourada e a postura firme e orgulhosa. 


Não faço de início nenhuma daquelas perguntas que tinha na cabeça, apenas bebemos bastante por cerca de dez minutos numa conversa simpática e regular, mas seria vergonhoso trair minhas intenções iniciais, portanto jogo-as na cara delas, crio coragem dizendo a mim mesmo que elas não sabem a falta que eu faço pra elas e proponho uma trepada, nós três, digo que elas me excitam, que elas são o sonho de qualquer homem, imploro pela oportunidade. Elas riem, se olham, se beijam, e devíamos estar realmente muito bêbados os três porque elas topam, Helena diz que sim, que quer, que seria legal, e arrasta eu e a Melissa pro segundo quarto à direita, onde como as duas, uma de cada vez claro, e é interessante observar como elas se preocupam mais uma com a outra e se lambem e se chupam do que comigo, ali ferrado na frente delas, com um puta dum sorriso na cara. E no final das contas ainda recebo de Helena o passaporte da alegria, o endereço do apartamento das duas, mas não deixo de perceber que Melissa, minha nova definição de beleza, recusa meu olhar contrariada, possivelmente arrependida do que acabou de fazer. 


Talvez tenha sido impressão minha. Dois dias depois já estava me dirigindo para o tal apartamento, era um fim de tarde chuvoso e melancólico, eu prosseguia a passos largos numa crise de personalidade em meio à qual eu já não sabia se era apenas um fodedor sortudo ou, se pelo contrário, era um intruso desmerecido entre aquelas duas mulheres que, afinal de contas, tinham lá sua relação emocional feliz e duradoura, e em cuja cama eu era sem dúvida um invasor. Mas algo além da promessa de mais uma transa me arrastava em direção àquele apartamento, eu não parava de pensar em Melissa e queria revê-la, portanto prosseguia resoluto e cantava aquela do Lobão "vou chorando pelo caaampo... no meeeeio... do temporal... uouooou", com as mãos nos bolsos e suspirando de expectativa. 


Elas me receberam com entusiasmo, fiquei aliviado. Ficamos tomando tudo que é tipo de trago, fumando um, comendo bolacha recheada, falamos bastante de nossas vidas, Helena estava bem louquinha como sempre e Melissa, gostosa como só ela debaixo da camiseta e da calça de moleton, parecia aceitar meu olhar mais facilmente do que da outra vez, o que me satisfazia bastante, e as duas me diziam que o negócio delas é mulher mesmo, mas que adoraram aquela noite e que podia rolar de novo uma hora dessas, e rolou. 


Mas desta vez foi diferente. Helena ainda era a mesma que eu havia comido dois dias antes, mas a Melissa era outra, parecia mais confortável, me abraçava, oferecia e exigia mais, me olhava nos olhos enquanto me chupava e foi assim, olhando nos olhos dela em plena felação, que me apaixonei irreversivelmente por ela. 


Voltei muitas vezes ao apartamento delas, eu ia pra cama com as duas mas só pensava na Melissa durante o dia todo, sonhava com ela quando dormia e, sobretudo, via ela se render cada dia mais à minha presença, ao meu corpo, até que passei a sentir que os quadris dela retesavam, implorando minha invasão, e lá ia eu, fodidamente apaixonado, pra dentro e pra fora do ventre macio, muscular, suplicante. 


Um dia, num boteco de esquina, contei pra ela da minha paixão, e ela contou pra mim o que eu no fundo já sabia, que ela estava destroçada por dentro, que sofria fisgadas nas entranhas pois o desejo que ela sentia era profano, inusitado, inédito, que sua sexualidade estava do avesso e isso ardia, mas sim, ela me queria, e o que sentia era amor ou algo do tipo, que veio e ficou, e ela já não podia nem queria lutar contra isso. Então eu seria o primeiro homem da vida da mulher mais bonita do planeta, eu disse, e ela riu, e depois eu soube mais, ela me contou histórias de infância, a felicidade vivida em todos esses anos durante os quais o homossexualismo lhe parecia uma escolha óbvia, falou da faculdade de Filosofia e de sua aversão a planos pro futuro. Nisso eu sugeri que viajássemos, pegássemos um ônibus prum lugar qualquer e ela topou. 


De vez em quando ela me diz que pensa em Helena, que ainda ama ela, e eu sempre repito que isso não me incomoda, ela pode pensar na Helena se quiser, o que eu quero é ser o homem da vida dela.

CONTO de DANIEL GALERA.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Cinema e História

Cinema e História
Marc Ferro


Coordenadas para uma pesquisa

            Entre cinema e história, as interferências são múltiplas, por exemplo: na confluência entre a História que se faz e a História compreendida como relação de nosso tempo, como explicação do devir das sociedades. Em todos esses pontos o cinema intervém.

Inicialmente como agente da história. Cronologicamente ele apareceu de início como instrumento do progresso científico: os trabalhos de Eadweard Muybridge, de Marey foram apresentados à Academia das Ciências. Hoje o cinema conserva essa função primeira, que foi estendida à medicina. A instituição militar também o utilizou desde o início, como, por exemplo, para identificar as armas do inimigo.

Paralelamente, desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários ou de ficção, que, desde sua origem, sob a aparência de representação, doutrinam ou glorificam. Na Inglaterra, mostram essencialmente a rainha, seu império, sua frota; na França, preferiram filmar as criações da burguesia ascedente: um trem, uma exposição, as instituições republicanas. Também na ficção o filme de propaganda aparece desde a origem: a favor ou contra Dreyfus, estigmatizando os boxers*1, etc.
*1Nome dado pelos ingleses aos membros de uma sociedade secreta chinesa que, em 1900, puseram em perigo as legações européias (N.T.)

Simultaneamente, desde que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele pô-lo a seu serviço: em relação a isso, as diferanças se situam ao nível da tomada de consciência, e não ao nível das ideologias, pois tanto no Ocidente como no Leste os dirigentes tiveram a mesma atitude. Painel confuso. As autoridades, sejam as representativas do Capital, dos Sovietes ou da Burocracia, desejam tornar submisso o cinema. Este, entretanto, pretende permancer autonômo, agindo como contra poder, um pouco à maneira da impressa americana ou canadense, e também como os escritores de todos os tempos procederam. Sem dúvida, esses cienastas, conscientemente ou não, estão cada a serviço de uma causa, de uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertamente as questões. Entretanto, isso não exclui o fato de que haja entre eles resistência e duros combates em defesa de suas próprias idéias. À sua maneira, o Jean Vigo de Zéro de Conduite, o René Clair de nós a liberdade, e Louis Malle de Lacombe Lucien, ou ainda o Alain Resnais de Stavisky*2, sem falar em quase todos os filmes de Godard, manifestam uma independência diante das correntes ideológicas dominantes, criando e propondo uma visão de mundo inédita, própria de cada um deles, o que vigorasamente suscita uma nova tomada de consciência, de tal forma que as instituições ideológicas instauradas (partidos políticos, Igrejas, etc..) entram em disputa e rejeitam tais obras, como se apenas essas instituições tivessem o direito de se expressar em nome de Deus, da nação ou do proletariado, e como se apenas elas dispusessem de outra legitimidade além daquela que elas próprias se outorgaram.

*2Sobre os títulos de filmes: sempre que possível, usou-se o título com que foram lançados no Brasil. Na ausência deste, foi mantido o título original, acompanhado eventualmente de tradução literal. (N.T.)

Essa capacidade do cinema não deixa de surpreender até mesmo as Igrejas mais bem instaladas em suas certezas dogmáticas que estão, de resto, frequentemente fundamentadas num saber subvertido: assim é que se explica, por exemplo, a aventura extraordinária de um número de cineastas soviéticos que puderam produzir filmes cuja significação e cuja fabricação escaparam ao apparatchiks  burocráticos – compostos por iletrados de cultura visual – que julgaram a ideologia d aobra por seus diálogos, seu roteiro, ou seja, por seus componentes escritos.

Hoje se vê uma nova etapa com a multiplicação das câmeras super 8: o cinema pode torna-se ainda mas ativo como agente de uma tomada de consciência social, com a condição de que a sociedade não seja somente um objeto de análise a mais, objeto que pode ser filmado brincando de bom selvagem para o benefício de um novo colonizador, o militante-cameraman. Outrora “objeto” para uma “vanguarda”, a sociedade pode de agora em diante encarregar-se de si mesma. Esse poderia ser o sentido de uma passagem dos filmes para os filmes militantes.

Medir ou avaliar a ação exercida pelo cinema é difícil. Certos efeitos, pelo menos, são distinguíveis. Por exemplo, sabe-se que O judeu Suss alcançou enorme sucesso na Alemanha, independentemente das ordens dadas por Goebbels; sabe-se também que logo após sua projeção, em Marselha, os judeus foram molestados. Outro exemplo: é possível observar que nos Estados Unidos os filmes antinazistas e os de exaltação da solidariedade patriótica só tiveram sucesso mediante duas condições – não glorificar a Resistência nos países ocupados nem a luta contra as instituições legais na Alemanha; não questionar a livre iniciativa de cada empresa sob o pretexto de coordenar melhor a produção de acordo com o apelo de Roosevelt.

Correlações e indicações desse tipo são raras. Um episódio recente, entretanto, testemunha a eficácia do fato cinematográfico: a apresentação, na ex-ORTF (Office de Radiodiffusion-Télévision Française), em 1975, de um filme letão sobre os campos de concentração na União Soviética, o que suscitou uma intervenção imediata do Partido Comunista Francês, medida que ele até então evitara.





Essa intervenção do cinema se exerce por meio de um certo número de modos de             ação que tornam eficaz, operatório. Sem dúvida essa capacidade está ligada, como se verá depois, à sociedade que produz o filme e àquela que o recebe, que o recepciona. Persite o fato de que além do ajustamento de dificuldades não cinematográficas (condições de produção, formas de comercilização, seleção de gêneros, referência a significados culturais, etc.) o cinema dispõe de certos número de modos de expressão que não são uma simples transcrição da escrita literária, mas que têm, sim, sua especificidade: os teóricos da escrita cinematográfica a estudam, de Jean Mitry a Bruce Morissete e Christian Metz.

Entretanto seria ilusório imaginar que a prática dessa linguagem cinematográfica é, ainda que inconcientemente, inocente. É fácil imaginar que um teórico do cinema, como Godard, por exemplo, seja mais mestre de sua escrita que um outro, e também de seu “estilo”: o longo travelling de Week-End restitui o tempo real por meio de diferentes temporalidades que são postas em cenas no filme para criar um “efeito”, para tornar insuportável a situação imaginada pelo autor. Da mesma forma, um procedimento aparentemente utilizado para exprimir duração, ou ainda uma outra figura (de estilo) transcrevendo um deslocamento no espaço, etc., pode, sem intenção do cineasta, revelar zonas ideológicas e sociais das quais ele não tinha necessariamente consciência, ou que ele acreditava ter rejeitado. É o caso, por exemplo, das “fusões encadeadas” de O judeu Suss, analisadas mais adiante. Da mesma forma, podem ser estudados os efeitos de montagem, como já fizeram Kulechov, Eisentein, etc., o funcionamento dos diferentes elementos da película sonorizada, e assim por diante. Chris Marker já abriu um via nesse sentido com Lettre de Sibérie; outros a sistematizam hoje analizando as n combinatórias no interior do filme.

3. É preciso dizer que a utilização e a prática de modos de escrita específica são, assim, armas de combate ligadas á sociedade que produz o filme, à sociedade que o recebe. Essa sociedade se trai inicialmente pela censura em todas as suas formas, compreendendo-se ai também a autosencura. O epílogo de O último homem, de Murnau, por exemplo, pode bem ser incluido nesse contexto: o produtor não queria


Leitura: 31

Copia:16

A Avant Garde e o Cinema

Esse texto foi copiado, de uma apostila do curso de cinema da Universidade Estácio de Sá, infelizmente,  na cópia, não ficou salvo o nome do autor e a bibliografia.

A Avant Garde e o Cinema

A Explosão das teorias era, na Europa, um fenômeno geral. Abrangia todos os ramos de atividades artísticas. Pela escultura, pela música, pela pintura, pelo teatro, pela poesia, os artistas assombrados talvez com as transformações, procuravam iluminar novos caminhos no mundo, que e em diferentes latitudes ia ocupando as estruturas carcomidas do mundo antigo.

Todos os historiadores reconhecem a importância da avant-garde na criação da escola francesa de cinema. A mais importante contribuição foi justamente na poesia que ultrapassou fronteiras. Esse punhado de individualistas com personalidades distintas estava unido pela mesma idéia de reação ao cinema francês de então. Essa reação se deu contra a disciplina de respeitar o roteiro técnico e propunha a volta ao script apenas como um guia.

Fernand Léger vanguardista explosivo em 1925 escrevia “O futuro do cinema como a pintura está no interesse que der aos objetos ou a invenções puramente fantasistas e imaginativas. O erro pictórico é o tema. O erro cinematográfico é o argumento. Liberto deste peso negativo, o cinema pode vira ser o gigantesco microscópio das coisas nunca vistas e nunca sentidas”.

Nele se contém um imenso domínio que não é inutilmente documentarista, mas que tem as suas possibilidades cômicas e dramáticas. A porta a abrir-se lentamente em grande plano (objeto) é muito mais emocionante que a projeção nas proporções reais da personagem que a abre (argumento).

Todos os valores negativos que encobrem o cinema atual são o argumento, a literatura o sentimentalismo: em suma, tudo o que concorra com o teatro.O verdadeiro cinema é a imagem do objeto totalmente desconhecido aos nossos olhos que será emocionante se o soubermos apresentar.

E por aqui, entraram os vanguardistas Germaine Dulac foi à primeira viajar por essa estética, Louis Delluc um dos seus grandes teóricos e o fundador da crítica cinematográfica, Jean Epstein o seu mais tenaz sistematizador. Alberto Cavalcanti, Jean Gremillon, René Clair, Marcel L´Herbier, Jean Renoir, Luís Buñuel, Eugene Deslaw, Jean Cocteau os discípulos queridos os apóstolos do novo verbo plástico.

Os vanguardistas se dividiam em três grupos de tendências diferentes. O primeiro que deu nome – ao movimento era formado pelos que tinham a preocupação de fazer filmes puros. Não colocar a câmera em posição normal, não contar nenhuma história, dividir cada tomada em parcelas minúsculas e temperar com trechos em negativo – Ex. Ballet Mecânico, de Léger.

O segundo grupo era constituído por Renoir, Epstein, René Clair, Alberto Cavalcanti e outros. Tinha a preocupação de contar uma história, mas com liberdade de expressão cinematográfica nas escolhas das analogias, das comparações e das metáforas.

O terceiro e último nasceu quando os dois primeiros já estavam em atividade deriva da escola surrealista e se compunha de Man Ray, Buñuel e Dali. De Buñuel falaremos mais adiante.

Com as mesmas tendências, mas repudiados pelos surrealistas, que chegava a ataques físicos e violências, havia Germaine Dulac e Jean Cocteau. Filmes Etoile-de-Mer, Um Cão Andaluz, Le Ostra e o Clérigo e Sangue de um Poeta.

Germaine Dulac era o motor de todas as experiências. Começou por dirigir filmes em 1915. Eram obras de um vanguardismo diluído a contemporizar ainda com as exigências comerciais dos produtores. Os filmes seguintes, todavia, já se podem considerar puramente como vanguardistas.

Foram: em 1924 O Diabo na Vila, em 1926 A Ostra e o Clérigo, em 1927-1930 L´Imitation au Voyage, Disque 927, ensaio de montagem rítmica sob um tema de Chopin, Arabesque outro ensaio do mesmo tipo sob um tema de Debussy e Tema e Variações, experiências de óptica melódica.

Em A Festa Espanhola o vanguardismo chocou-se com a teatralidade odienta da interpretação, o que levou Germaine Dulac a pensar que a expressão cinematográfica não se compadecia com a imagem das pessoas como pessoas e que seria necessário, portanto, coisificá-las. O vanguardismo puro encaminhar-se-ia para o melodismo da imagem montada, espécie de música das imagens,como os intelectuais pretendiam.

Louis Delluc, jornalista e escritor teatral haveria de querer, ir muito mais longe. Morreu com trinta e quatro anos. É muito difícil por isso mesmo, descortinar seguramente, o valor real das suas teorias. A morte interrompeu o discurso. Salientou-se assim, principalmente como crítico.

Jean Cocteau dirigiu Sangue de um Poeta, filme cujo interesse residia mais na personalidade ambígua do autor. Cocteau, aliás, nunca fez nada que se lhe comparasse. Quando o fez ignorava tudo quanto respeitava ao cinema.

Vigo, esse dirigiu A Proposta de Nice, Zero de Conduite e O Atalante, já filmes sonoros. O segundo foi proibido pela censura francesa e ambos se podem considerar como a última fase do vanguardismo. Nele é Freud e se Pansexualismo quem comanda a imagética recheada de símbolos sexuais.

Vigo foi o último vanguardista. Estudando a biografia de Vigo, é possível descortinar o fundamento disto tudo. Aos doze anos foi posto de quarentena pelos moradores do pensionato, que o chamavam de “filho do traidor”. Seu pai, o anarquista Almereyde, fora estrangulado pela democrática polícia de Clemenceau.

Nos anos 20, se poderá encontrar-se originalidade em Carl Theodor Dreyer e, no filme A Paixão de Joana D´Arc, o único que dirigiu em França e já era sonoro.

Dreyer era realizador pré-expressionista, o seu misticismo impedia-o d se entregar inteiramente ao estilo de Caligari. Em Páginas do Livro de Satã, conta contar quatro momentos das maldades do Demônio na Terra: A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Inquisição, A Revolução Francesa e o Bolchevismo na Finlândia. Usou conscienciosamente os grandes planos e, o gosto pela composição que era a característica essencial da escola escandinava. Dreyer, dinamarquês luterano, vivia com paixão do seu misticismo e os seus filmes são, o espelho da sua personalidade.

René Clair fez, entretanto, uma das obras mais famosas do movimento, onde sabiamente como o pretendia Fernand Léger, coisificando as pessoas e humanizando os objetos, se esboçava um gênero de farsa abstrata que, desgraçadamente não frutificou.

René Clair era a figura tecnicamente mais bem preparada do vanguardismo. Poeta, escritor, jornalista, nunca se deixou embalar pelo informalismo integral de um Cocteau ou de um Buñuel. Começou a carreira como ator, quando em 1924 faz Paris Qui Dort e, entretanto, não trazia para o cinema apenas mais uma mão cheia de talento e boa vontade sabia o que fazia e, por isso, fazia o que queria. Ambos os filmes denunciam uma personalidade maior, ao menos no cinema francês.

Paris Qui Dort contava a seguinte história: Sob a misteriosa ação de um raio diabólico, suspende-se a vida parisiense. Apenas seis pessoas conseguem escapar à forçada imobilidade, refugiando-se na Torre Eifel, por cima da zona dominada pelo cósmico poder. As suas personagens são, assim, senhores incontestados de Paris, mas a sua forçada vida comum provoca maiores complicações, até que, por intermédio do filho do interventor do raio do sono, conseguem pôr-se em contato com o sábio e restituir á cidade o movimento, o frenesi, a alegria que a caracteriza.

Clair utilizou pela primeira vez em Paris Qui Dort os chamados paralíticos, fotogramas que indefinidamente se repetem, deixando de dar a sensação do movimento. Deste modo, podiam ver-se a Avenue de L´opera os automóveis pararem de repente, vítimas do raio diabólico, efeito simplicíssimo, cujo resultado espetacular, porém, naquele caso – dentro do seu contexto visual – era total.

Depois de fazer Paris Qui Dort, René Clair dirigiu Entreato, filme que lhe tinha sido encomendado para se incluído no Ballet instantaneista em dois atos e um entreato cinematográfico chamado Relâche, libreto de Francis Picabia e música de Erik Satie que a companhia de ballet sueco deveria interpretar, a partir do dia 27 de novembro de 1924, no teatro dos campos Elíseos.

Entreato é a obra mais significativa desta facção da vanguarda cinematográfica francesa; exemplo requintado do cinema puro, do cinema sem narrativa, da óptica melódica. Uma sucessão de imagens ligadas essencialmente pelo ritmo: um canhão que roda em ameaças, enquanto pessoas saltam ao retardador por sobre o cano, uma bailarina que a panorâmica vertical ascendente descobre ser uma barbuda personagem, um enterro em que a carreta é puxada por um camelo, um desfile de montanhas russas, um prestigiador que com varinha mágica faz desaparecer toda a gente, incluindo ele próprio.

O humor e a poesia, o ritmo e o ballet, a forma expressionista de animificação das coisas, os temas clássicos do vanguardismo evoluído e contaminado de surrealismo, fazem deste filme formalmente perfeito, uma obra prima.

Tematicamente há em René Clair uma decidida tendência para o humor fantástico, para a comédia de situações incríveis.

Clair, coerente consigo próprio considerava o cinema como o que não se pode contar. Por isso mesmo, para além do que há de essencialmente literário no cinedrama, um criador cinematográfico puro. Deve-se considerá-lo, todavia, como uma das personalidades mais importantes da história do cinema.

Outro caso é de G.W. Pabst, na Alemanha, Pabst filma tema sociais. O seu filme mais conhecido é A Caixa de Pandora, a obra tende para um certo naturalismo crítico, não para o realismo como o pretendem certos autores e sim para o naturalismo, porque Pabst limitando-se a mostrar e a criticar platonicamente o que via, não pretendia (como os realistas, insinuar uma solução para os casos sociais que filmava. Era um plástico); compadecia-se excessivamente, com a beleza do enquadramento, com os efeitos de luz, tão do gosto do cinema alemão, deliciando-se na criação de uma atmosfera. Não se preocupava, porém, com a interpenetração da forma no conteúdo, impondo a aquela a expressão exata deste – preocupação fundamental com o realismo. Pabst foi um exagerado em seu esteticismo.