domingo, 16 de agosto de 2009

Devoção e vida cotidiana à volta da Igreja do Carmo no séc. XVIII

Restauração da Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé

Capacitação de professores

Palestra: Devoção e vida cotidiana a volta da Igreja do Carmo no séc. XVIII

Devoção e vida cotidiana à volta da Igreja do Carmo no séc. XVIII

Mary Del Priore: Historiadora membro do IHGB

Professora do curso de pós-graduação da UNIVERSO / Universidade Salgado de Oliveira

Em janeiro de 1747, na presença do senhor Bispo e dos membros da Câmara foi lançada a pedra fundamental do templo dedicado a Nossa Senhora do Carmo. Nesta época, segundo um viajante de passagem, "O Rio de Janeiro não era grande". Não por falta de espaço, pois, na parte traseira da cidade havia um agradável prado, rodeado por montanhas. O centro urbano, contudo, se concentrava exatamente na frente da futura igreja, ou seja, no Largo do Paço, também conhecido como terreiro da Polé, porque aí se erguia o pelourinho, temido por castigar ladrões e escravos.

A rua mais freqüentada, onde se encontrava o maior número de estabelecimentos comerciais era, então, chamada pelos habitantes de rua grande. A hoje, 1° de março, por sua vez, era bastante larga e muito comprida, permitindo a passagem de até três carruagens ao mesmo tempo. O convento de São Benedito, cuja a igreja era considerada a mais bonita, estava situado no fim dessa rua. No extremo oposto, se achava o convento dos jesuítas. "No meio da rua principal, do lado do mar, situa-se a casa do governador que – conta-nos o francês viajante – não é grande coisa. Há muitas outras ruas menores, mas que não deixam de ser bonitas, bem traçadas e repletas de casas bem".

A história da Igreja, instalada no mais importante da cidade começou com música e festa. No dia em que tiveram início às obras, a praça do largo do Paço estava enfeitada. Das janelas das casas pendiam os mais finos tecidos e melhores colchas da Índia. As ruas que dela saíam tinham sido atapetadas com capim cheiroso e folhas de laranjeiras. Um cortejo de tambores acordara a comunidade enquanto uma orquestra de trombetas, tambores e címbalos convidavam o povo a se alegrar com a novidade. Repicavam, alegres, os sinos. Passavam os estandartes das irmandades religiosas. Alguns moradores caiaram e iluminavam as fachadas de suas casas com as chamadas "festivas luminárias", panelinhas de barro contendo azeite de mamona e uma ponta de algodão que se acendia. Os mais pobres usavam cascas de laranja como recipientes. Mas o barulho das festividades que marcaram a inauguração da igreja, servia, também, para encobrir a tensão que existia entre o bispo e as irmandades de N. S. Do Rosário e S. Benedito ansiosas por estabelecer um templo para seus devotos, os mulatos e negros livres e escravos, que não podiam se misturar aos brancos livres.

A vista que se tinha, nesta época, da Igreja, dava para um pobre terreiro à beira-mar. Além dele, se viam as praias ainda desertas de Niterói e as várias ilhotas dispersas no fundo da baía. O embelezamento do Paço começou, em 1735, quando o Governador Gomes Freire de Andrade resolveu construir aí a sede do governo: um prédio de dois andares feito em pedra lavrada. O terceiro piso, com 12 janelas, só foi levantado, mais tarde, por D. João VI, em 1814. Em 1770, outra novidade: o vice-rei Luís de Vasconcellos mandou erigir um cais de atracação, com três escadas para o mar e uma rampa para embarcações. Ele foi inaugurado em março de 1789. Bem no meio do cais, dando para as águas da baía, pronto a abastecer com água potável tanto os navios que chegavam quanto a população, o chafariz "da pirâmide", obra de mestre Valentim. Graças a todas estas modificações, o Largo do Paço com sua bela igreja se tornou um dos lugares mais animados da pequena cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII.

Diante das grandes portas de madeira lavrada do Carmo, cruzava a praça, em lombo de burro ou de escravo, tudo o que servisse como provisão nas embarcações: charque, açúcar, cachaça, tabaco e lenha. A cidade era um porto de escala para navios estrangeiros, sem contar que o aumento do comércio internacional, a partir de 1808, deixou este ponto ainda mais vivo. Disputavam cada pedaço de chão de terra batida, desde canoeiros a plantadores da roça que vinham expor seus produtos, a marinheiros e traficantes de escravos carregadores brancos e de pés descalços assim como escravos africanos, curvados sob o peso de fardos. Dezenas de escravos de ganho, com seus tabuleiros na cabeça, ofereciam alimentos preparados em casa, bebidas refrescantes ou frutas da estação. Na rua grande, se apertavam, lado a lado, lojas e empórios com seus produtos expostos à porta. Do fundo dos corredores vinha o barulho dos pregões e do vozerio de vendedores e compradores; uns expondo as mercadorias, outros, regateando o preço. Sacos de secos e molhados, se acumulavam junto às gaiolas com galinhas, macacos, lagartos e porcos do mato.

Um pouco mais abaixo, viam-se os tabuleiros do mercado de peixe, de onde partiam os gritos dos comerciantes oferecendo os seus produtos a preço baixo. Um odor nauseabundo inundava as narinas de quem passasse. O mercado de escravos não ficava longe e era comum que vendedores expusessem sua mercadoria, para melhor análise do comprador, nas imediações do Arco do Telles. Das varandas fechadas com treliças, no segundo andar dos sobrados eu cercavam a praça, mulheres observavam sem ser vistas.

Em quase todas as esquinas da rua grande, se podia encontrar um pequeno nicho onde estava colocada uma imagem da Virgem ou de outros santos, imagem eu permanecia iluminada por uma lanterna à noite. Todo o final de tarde, o povo se reunia em torno deles para cantar o rosário. Até as prostitutas que ofereciam seus favores aos passantes, próximos ao Arco do Telles, não admitiam começar a trabalhar antes de findas as Ave-Marias.

Um marido jamais caminhava ao lado de sua esposa na rua grande ou em qualquer outra. Ele seguia alguns passos à frente, sempre com sua espada a mostra sob o manto. Á esposa se fazia acompanhar algumas vezes dos parentes ou dos amigos e, impreterivelmente, de muitas negras e mestiças que a seguiam em fila indiana; essas escravas usavam vestidos e traziam cabelos cobertos por um lenço ou peça de musselina. Mesmo quando carregadas em cadeiras ou redes, as mulheres não dispensam tal cortejo, como registraram vários viajantes estrangeiros.

Os escravos que circulavam nas imediações do Paço, - contam, também, os viajantes – mostravam o abandono em que viviam. Os homens andavam quase nus, vestidos com um calção, ou quando as voltas com suas sandálias diárias, com um simples pano. Alguns tinham, contudo, uma camisa e um casaco. Os negros libertos portavam as mesmas vestes e o mesmo manto dos brancos. As mulheres vestiam saia e um tipo de camisa, parecida com as nossas camisas de homem, cuja parte da frente era aberta e ligada por um colete. Elas não ousavam aparecer na rua durante do dia. Só era possível vê-las aos domingos e dias de festa, na missa. Algumas poucas tinham liberdade de sair no final da tarde para cantar o rosário. Quando saíam de casa, portavam sempre uma grande capa de lã de aproximadamente duas varas de altura por uma de largura. E isto independentemente do calor de que fazia. A capa era ajustada de tal modo que a diagonal ficava no meio das costas; uma das pontas era utilizada como um capuz semelhante aquele dos carmelitas e agostinianos, a ponta oposta servia para esconder o rosto; as duas outras cobriam os ombros e os braços cruzando-se sobre a cintura. As negras usavam, na rua ou no campo, um chapéu para se protegerem do sol. Evitava-se mostrar o rosto e sobretudo, que elas levantassem os olhos para eles. Uma mulher que encarasse um homem era considerada uma despudorada.

A construção da igreja animava outra atividade social importante: a missa diária e em dias de festa. As mulheres chegavam por volta das sete horas da manhã acompanhadas de familiares e escravos. Sentadas no chão, esperavam o momento de se confessar conversando entre si chupando laranjas. Os ofícios eram longos e acompanhados de música. Por vezes, se ouviam até acordes de músicas profanas. O famoso músico, Padre José Maurício, mulato e pai de cinco filhos, executou ai peças que rivalizavam com a produção musical européia, da mesma época. As igrejas ficavam então, magnificamente iluminadas. Não faltaram viajantes estrangeiros a dizer que este momento era aguardado com muita ansiedade, pois se constituía numa das raras oportunidades para as mulheres se vingarem do excessivo ciúme dos maridos, escapando ao estado opressivo em que viviam. As igrejas eram de fato, lugares onde jovens enamorados trocavam sinais e aproveitavam o escuro de alguns altares para se beliscar, gesto de afeto, outrora. Ou para se enviar recados. E no escurinho dos ofícios, como dizia um padre, "por vezes, Deus dava licença ao Diabo".

Para os habitantes o Rio de Janeiro, a rua grande e a igreja do Carmo significaram no século XVIII, um espaço privilegiado. Espaço que investia o território urbano de sociabilidades plurais. A rua grande invadia o espaço sagrado da igreja, graças às vozes dos escravos oferecendo seus tabuleiros, dos comerciantes anunciando seus produtos, dos dialetos estrangeiros dos vários navegantes que por sua porta passavam, do choro dos africanos ao desembarcar na terra estrangeira. Ela era palco de trabalho, de relações afetivas, de discussões, de espetáculos e mesmo de morte. Já a Igreja do Carmo, traduzia a devoção e a identificação religiosa de toda uma população. Dela saíam as mais importantes procissões: a do enterro na noite da Sexta-Feira da Paixão, com tochas, archotes e cantos fúnebres, e a de corpus Christi, com a tropa militar formada e a presença de São Jorge, guerreiro armado e a cavalo. Mas o espaço sagrado foi também cenário de acontecimentos políticos importantes. Elevada a Capela Real em 1817, a Igreja do Carmo foi o palco o casamento de D. Pedro I com Leopoldina de Habsburgo. E nela mesma, já elevada a catedral em 1824, o imperador jurou, em 25 de março, a primeira constituição brasileira.