terça-feira, 17 de maio de 2011

Nacionalismo no Novo Mundo - Identidade Dos Estados e identidade nacional à época da Revolução Americana




Nacionalismo no Novo Mundo


Marco A. Pamplona e Don H. Doyle. Editora Record. Rj.

Identidade Dos Estados e identidade nacional à época da Revolução Americana

Jack P. Greene


De que modo uma nação criada a partir de uma composição de antigas unidades políticas desenvolve uma identidade nacional e um sentido de lealdade entre seus cidadãos é um problema fascinante e complexo que merece mais atenção do que recebeu até agora na nova literatura sobre a história da formação do Estado moderno e o início da modernidade. Talvez esse problema desperte ainda mais a curiosidade quando, como no caso dos Estados Unidos, o novo Estado Nacional é uma conseqüência não premeditada de um movimento político sem planejamento. É evidente que não poderia existir nenhum nacionalismo especificamente americano, baseado na lealdade a uma política nacional americana, antes de existir essa unidade política ou pelos menos a perspectiva iminente de um desses Estados. E os novos Estados Unidos, surgidos em meio ao sofrimento da resistência política a Whitehall e da resistência militar a um exército experiente, ambos unidos na intenção de curvar os colonos à vontade da metrópole, somente vieram à luz em 1776, embora antes do outono de 1774 não houvesse sequer uma perspectiva de sua existência.


Para destrinchar os problemas de identidade nacional que surgiram nos Estados Unidos durante o período revolucionário – de que tipo e como eram – faz-se necessário de início compreender a natureza das lealdades e identidades de organização coletiva existentes nas diversas unidades políticas que se uniram para formar a nação. Na medida em que os habitantes dessas unidades políticas tinham uma identidade nacional maior, essa identidade não estava, ao contrário da suposição implícita de algumas gerações de estudiosos da história americana, impregnada de um anseio pelo surgimento de uma identidade nacional americana, engendrada por um Estado nacional americano. Em vez disso, ela girava em torno do orgulho dos colonos por sua ligação com o Estado Nacional extremamente bem-sucedido da Grã-Bretanha.


Essa ligação era uma função da própria natureza da colonização inglesa do início dos tempos modernos. Como Richard Helgerson e Liah Greenfield ressaltaram recentemente, um sentido de identidade nacional nítido e bem articulado foi um produto do final da era elisabetana e início da jacobina, o período exato em que ingleses estavam começando a formar as primeiras colônias inglesas na América. O protestantismo e, cada vez mais durante o final do século XVII e o XVIII, a lenta expansão da superioridade comercial e marítima da nação inglesa eram componentes significativos dessa identidade. Muito mais significativo, porém, era o sistema inglês de justiça e liberdade. Sintetizado pelas instituições consensuais de júris e parlamentos, e pela tradição da subordinação do monarca à lei, esse sistema, como concordavam ingleses da época e muitos observadores estrangeiros, constituía a principal distinção entre o povo inglês e todos os outros sobre a face da terra.


O povo predominantemente inglês que criou e organizou todas as colônias inglesas ou, depois de 1707, britânicas na América trazia consigo para o novo lar vínculos explícitos e profundos para com a cultura que deixava para trás e para com a identidade nacional implícita nela. Aonde quer que fossem com a intenção de colonizar, eles manifestavam a poderosa determinação de expressar e preservar sua qualidade de ingleses com o reordenamento de paisagens físicas e culturais existentes de acordo com tradições inglesas, impondo-lhes seus modelos de ocupação da terra, de organização social e econômica, práticas culturais e sistemas políticos, jurídicos e religiosos, enquanto tornavam o inglês a língua da autoridade. Isso valia até mesmo para aqueles aglomerados formados pelos que tinham esperança de aperfeiçoar as instituições inglesas como por exemplo, os Puritanos de Massachussets. Longe de se abrandar com a imigração contemporânea de quantidades significativas de pessoas provenientes de outros pontos da Grã-Bretanha, da Irlanda e da Alemanha, esse impulso anglicizante parece ter de fato sido reforçado durante as décadas subseqüentes a 1740 pelo aumento dos laços comerciais e de comunicação entre as colônias e a Grã-Bretanha, bem como pela importante participação das colônias nas guerras imperiais contra os países católicos, e supostamente despóticos, da França e da Espanha entre 1739 e 1763. É provável que em nenhum outro momento da era colonial o nacionalismo e o patriotismo britânicos tivessem sido mais fortes do que no final da Guerra dos Sete Anos.


Para os colonos ingleses e seus descendentes, porém, uma variedade de condições atuou durante os longos anos dos tempos coloniais, tanto para tornar discutíveis as reivindicações coloniais a uma identidade inglesa quanto para aumentar a premência dessas reivindicações entre imigrantes e seus descendentes. Essas condições incluíam a enorme distância física dos colonos em relação à Inglaterra; os contrastes culturais e sociais, em especial durante as primeiras décadas das colônias, entre as sociedades simples e rústicas que eles estavam construindo e a sociedade complexa e infinitamente mais refinada da qual provinham; sua situação nos limites mais remotos da civilização inglesa, em meio a populações que lhes pareciam pagãs, bárbaras e selvagens; a presença, quando não a preponderância, nessa sociedade, de “estrangeiros”, sob a forma de ameríndios e, mais tarde, de africanos nessas sociedades, sua freqüente necessidade de recorrer a novas instituições, como, por exemplo, os latifúndios e a propriedade de escravos baseada na raça: os constantes conflitos com a pátria de origem para determinar se eles, como colonos, tinham direito às leis e aos privilégios ingleses: e talvez o mais importante de tudo, uma tendência geral entre o povo nas ilhas de origem de considerá-los como “outros”, que se encontravam consideravelmente abaixo dos padrões da metrópole.


Nada ressaltou com maior vigor para os colonos a natureza questionável de suas reivindicações de uma identidade britânica do que as diversas medidas litigiosas entre as colônias e a Grã-Bretanha entre 1764 e 1776. No fundo, os colonos faziam objeção á cobrança de impostos e à intromissão do governo em assuntos internos sem seu consentimento exatamente porque, por serem contrárias aos direitos e às garantias legais a que tradicionalmente faziam jus os britânicos livres ou “independentes”, essas medidas colocavam em dúvida sua identidade como britânicos. A agressividade de suas objeções proclamava a profunda importância que eles continuavam a atribuir à manutenção daquela identidade. De fato, o que veio a ser conhecido como a Revolução Americana foi, até um nível significativo, uma decorrência direta da resistência colonial àquelas medidas e deveria ser entendida como um movimento dos habitantes britânicos das colônias para garantir o reconhecimento de sua identidade britânica pela metróple. Antes do inverno de 1775-76, quando já estava disseminado o sentimento favorável à independência, a união entre as colônias era principalmente um meio para alcançar esse fim.


Por mais importante que fosse, a identidade que os colonos compartilhavam como britânicos protestantes, nascidos livres, sempre foi medida por um conjunto de identidades coloniais. Ao longo dos anos, cada colônia, como entidade social e política separada e semi-autônoma, desenvolveu uma específica identidade coletiva. Enraizadas num determinado espaço físico, manifestadas através de uma forma específica de organização socioeconômica, ampliadas, modificadas e refinadas por décadas de experiência coletiva, e internalizadas por várias gerações de crioulos e imigrantes, essas identidades coloniais e as lealdades e compromissos a elas associados, já na época da Revolução Americana, estavam profundamente entrincheiradas.


Se os colonos possuíam uma identidade britânica comum, essa identidade existia, portanto, onipresente em simbiose com outra identidade que tinha uma base local e social, fundações, explicações e justificações históricas, que era transmitida culturalmente de uma geração para a seguinte e era considerada consagrada. Logo, britânico era uma categoria com muitas subcategorias. Ser da Virgínia era diferente de ser da Pensilvânia ou de Rhode Island. Se os colonos se empenharam em resistência política para defender sua reivindicação do direito a uma identidade britânica, eles também trouxeram para essa resistência identidades provinciais bem desenvolvidas e profundamente arraigadas, com as quais se sentiam à vontade, das quais tinham orgulho e a respeito das quais podiam ter uma atitude extraordinariamente defensiva.


Se ataques ao direito a uma identidade nacional britânica levaram os colonos a resistir, a força de suas identidades provinciais ajuda a explicar por que, em 1776, eles não demonstraram maior hesitação diante de abdicar a sua identidade britânica. Muito antes, na maior parte dos casos, eles tinham encontrado meios de incorporar sua identidade britânica – com sua ênfase no protestantismo, liberdade, Estado de direito, governo consensual, civilidade e comércio – às suas identidades provinciais. Por esse motivo, quando os colonos abandonaram sua ligação formal com a Grã-Bretanha, não se tratou tanto de eles terem renunciado a sua identidade britânica nacional, mas de reafirmarem sua adesão aos principais componentes daquela identidade, bem como seu uso como exemplo. Na segurança de suas diversas identidades provinciais, os líderes da resistência colonial podiam abandonar sua ligação com a Grã-Bretanha e transformar colônias em unidades políticas republicanas, sem medo de perder seu arraigado e psicologicamente importante sentido de si mesmos como povos protestantes nascidos em liberdade, herdeiros legítimos das tradições britânicas do governo consensual e do Estado de direito. Ao fazer valer suas distintas identidades provinciais, transferindo-as abertamente para os novos estados que criaram a partir das antigas unidades políticas coloniais, os líderes revolucionários estavam efetivamente afirmando, por toda a parte, a condição daqueles estados como genuínos repositórios de tudo o que era admirável a respeito da identidade nacional britânica e, com isso, reiteravam a continuidade de sua identificação cultural com o mundo britânico mais amplo ao qual tinham se sentido vinculados por tanto tempo.


Ademais, ao longo de todo o período revolucionário – e nos estados fundadores da federação, provavelmente ainda por mais algumas décadas – essas identidades provinciais representavam a forma principal de consciência coletiva. Antes de meados da década de 1770, o entendimento convencional, como expresso, por exemplo, por Benjamin Franklin num panfleto de 1760 publicado em Londres, era o de que as colônias eram por demais dessemelhantes até mesmo para agir de comum acordo em sua própria defesa, muito menos para se amalgamarem na forma de uma única unidade política. As colônias não só estavam “sob o comando de governadores diferentes, mas também tinham formas diferentes de governo, leis diferentes, interesses diferentes, e algumas delas confissões religiosas diferentes e maneiras diferentes”, escreveu Franklin, acrescentando que a “inveja entre elas” era tão forte que, por mais necessária que fosse, de longa data, uma união das colônias para sua defesa e segurança comum contra os inimigos, mesmo assim elas nunca tinham conseguido concretizar uma união entre si, nem mesmo para entrar em acordo para solicitar à metrópole que estabelecesse essa união para elas.
Quando representantes das colônias continentais se reuniram no Primeiro e no Segundo Congresso Continental em 1774 e 1775, essa percepção pairava no pano de fundo. Os que eram mais cautelosos quanto a resistência à Grã-Bretanha, com a especial inclusão do advogado da Pensilvânia e futuro legalista Joseph Galloway, ressaltavam as profundas diferenças entre as colônias e os prováveis efeitos dessas diferenças sobre sua capacidade de manter uma resistência comum. “Suas diferentes formas de governo – Produtos do Solo – Visões sobre o comércio, suas diferentes religiões – Temperamentos e interesses particulares – Seus preconceitos e invejas contra cada uma das outras – tudo isso” previa ele, operaria “sempre” para criar uma tal Diversidade de interesses [,] Inclinações e Decisões” que “jamais se uniriam mesmo que fosse para sua própria Proteção”. Aos olhos de Galloway, essa desunião tinha dois efeitos potencialmente danosos. Em primeiro lugar, ela tornava as colônias “fracas em si mesmas”. Muitas delas, observou ele ao chamar atenção para a onipresente instituição da escravidão na América do Norte, já traziam “nas Entranhas um Inimigo pronto” para destruí-las. Em segundo lugar, isso as tornava arenas em potencial para guerras civis. Quando irrompessem entre elas “Controvérsias baseadas no Interesse, na Religião ou na Ambição”, advertia Galloway, as colônias se tornariam “Presa fácil para qualquer invasor estrangeiro”.


Não obstante, os sentimentos fortes e surpreendentemente difundidos de identificação com a “causa comum” em 1774-76 proporcionaram uma base para as primeiras articulações de aspirações pela criação de uma identidade americana mais ampla. Foi assim que Patrick Henry, advogado e orador da Virgínia, proclamou no Primeiro Congresso Continental que as “Distinções entre os cidadãos da Virgínia, da Pensilvânia, de Nova York e da Nova Inglaterra já não existem. Não sou virginiano, mas americano” Foi assim que o médico da Pensilvânia Benjamin Rush, nos dias que se seguiram à Declaração da Independência, recomendou aos companheiros representantes que renunciassem a “distinções entre colônias”. “Agora somos um povo – uma nova nação”, afirmou ele, com a argumentação de que os americanos não eram “mais divididos” em seus “Interesses, língua & comércio” do que o povo da Grã-Bretanha, e que “a variedade de interesses” e de produções entre eles era de fato uma “Vantagem” tão extraordinária “para nós” a ponto de sugerir “que os céus tivessem nos destinado para ser um povo”. “Um congresso geral fez com que as Colônias viessem a conhecer umas às outras”, disse o representante de Connecticut Silas Deane em tom satisfeito e otimista no início de 1775, “e tenho esperança de que outro possa estabelecer uma Confederação duradoura que talvez não precise de nada, a não ser de tempo para amadurecer e resultar numa Constituição Americana completa & Perfeita”.


Entretanto, esse tipo de entusiasmo “nacional” era sempre moderado pelo reconhecimento da incrível diversidade entre as colônias. Como Samuel Ward, de Rhode Island, escreveu para um correspondente em sua colônia de origem, os representantes que participavam do congresso sem dúvida estavam “muito felizes... que o Bem comum de nosso país” parecesse “ser o objetivo geral” de todos os representantes e que, como afirmou Richard Henry Lee, da Virgínia “todas as antigas províncias, sem exceção” estavam “dirigidas pela mesma firmeza de união e determinação de resistir [a Grã-Bretanha] de todas as formas e a qualquer custo”. Á medida porém, que foram se familiarizando mais umas com as outras, estudando o “Caráter e Temperamentos”, bem como os “princípios e opiniões” de seus colaboradores, e aprendendo cada vez mais sobre os modelos distintos de “Comércio, política e Pleno Interesse de uma dúzia de províncias separadas”. Elas também chegaram rapidamente à percepção de que “as diferentes formas de governo nas diversas colônias, a educação, os Livros & a sociedade diferentes provocavam naturalmente que a visão de objetivos políticos nem sempre fosse a partir da mesma perspectiva”.


Essas diferenças proporcionaram a base para comparações desfavoráveis e aumento da inveja. À medida que alguns representantes avaliaram os de outras colônias e os consideravam inadequados, eles também desenvolviam uma valorização maior de não importa o que fosse em sua sociedade provincial que a tornava superior à sociedade de outras regiões, reforçando vigorosamente as identidades provinciais que tinha trazido consigo para a Filadélfia. Esse processo fez pouco para alterar estereótipos e suspeitas existentes. Como era objeto das Leis Intoleráveis de 1774, Massachussetts estava no centro do furacão da resistência, e os representantes da Nova Inglaterra “encontraram uma forte inveja de Nós, da Nova Inglaterra, e do Massachusetts em especial”. Como John Adams, advogado de Massachusetts, escreveu a sua mulher Abigail, representantes de outras regiões tinham suspeitas de que o povo da Nova Inglaterra tinha “projetos de independência”, que eles queriam criar e dominar “uma República Americana”, que eram fanáticos religiosos que agiam de acordo com os “Princípios Presbiterianos – e mais um monte de coisas”. Adams tinham esperanças de que a nomeação de George Washington, da Virgínia, para comandante-chefe do exército na primavera de 1775, neutralizaria esse tipo de inveja e teria “um grande efeito para consolidar e garantir a União dessas colônias”.
A nomeação de Washington pode ter de fato consolidado as relações entre Virgínia e Massachusetts, as duas colônias que ao longo da década anterior tinham disputado a liderança da resistência aos esforços britânicos para cobrar tributos das colônias e controlar melhor a administração colonial, mas ela de modo algum eliminou as profundas invejas e dissensões entre as regiões. Quando o governo britânico deu todas as manifestações de estar determinado a garantir a obediência colonial pela força, e quando, durante a primeira metade de 1776, os líderes coloniais começaram cada vez mais a pensar em termos de independência política, eles continuaram preocupados com a possibilidade de alguma colônia recalcitrante romper a união do movimento de resistência. As colônias da Virgínia, das duas Carolinas e da Nova Inglaterra se prontificaram, com relativa rapidez, e apoiar o movimento pela independência, mas algumas das colônias do meio, que incluíam principalmente Maryland, Pensilvânia e Nova York, agiram com muito mais deliberação. Essa situação de ansiedade despertou todas as suspeitas latentes e a desconfiança que uma sentiam das outras. Foi assim que James Duane, em maio de 1776, aconselhou seu companheiro representante de Nova York, John Jay, a não se pronunciar rápido demais pela independência. Deveríamos esperar para ver “a conduta das outras colônias do meio antes de chegarmos a uma decisão”, escreveu ele. “Não nos pode ser prejudicial aguardar algumas semanas. A Vantagem será enorme, pois essa árdua questão revelará com nitidez os verdadeiros princípios e até onde vai a união das colônias”.


Esse comportamento cauteloso não granjeou para os nova-iorquinos a simpatia dos outros líderes da resistência. Antes que Maryland optasse pela independência, John Adams a descrevia como “uma colônia tão excêntrica – às vezes quente, às vezes tão fria – ora tão alta, ora tão baixa – que ... muitas vezes desejei que ela trocasse de lugar com Halifax (Nova Scotia)”. Adams, entretanto, reservou seus julgamentos mais negativos para Nova York, a última colônia a se decidir pela independência. “Será o engano ou a mera obtusidade no povo de Nova York que resulta em sua política excêntrica e retrógrada?” disse Adams, furioso a John Sullivan, político de Nova Hampshire, no final de junho de 1776. “Qual é a razão para Nova York precisar continuar a envergonhar o continente? E precisa continuar assim para sempre? Qual é a causa?” Na mesma ocasião, Adams perguntou ao líder de Connecticut, Samuel Holden Parsons: “Não tem eles políticos capazes de instruir e formar os sentimentos do seu povo? Ou são eles incapazes de ver e sentir como outros homens. Seria de imaginar que sua proximidade da Nova Inglaterra fizesse com que assimilassem suas opiniões e princípios”, observou ele. “Seria também de imaginar que a presença de unidades do exército britânico em Nova York exercesse alguma influência sobre eles. Mas parece que não houve nenhuma. É provável que Nova York tenha a honra de ser a última de todas a absorver os princípios genuínos e o verdadeiro sistema da política americana. Talvez”, conclui em tom de desespero, “ela nunca os leve em consideração”.


Em carta a seu amigo Cotton Tufts, Adams atinou com o que acreditou ser a explicação fundamental para o hesitante progresso de Nova York na direção de endossar a independência: seu próprio caráter e identidade coletiva. Nova York, escreveu ele:


“Ainda age com o Caráter de um povo sem coragem, juízo ou espírito, ou para resumir, sem qualquer outra virtude ou capacidade. Nessa província como um corpo não há brio nem energia. Os indivíduos são muito inteligentes. Mas ela é a Província mais fraca no que diz respeito ao intelecto, ao valor, ao espírito público ou a qualquer outro aspecto que seja bom e admirável no continente. Ela é incapaz de nos beneficiar muito ou de nos prejudicar muito, a não ser por sua situação geográfica. Perseguem-nos a esperteza desprezível dos indivíduos e sua corrupção. As virtudes de alguns indivíduos são de algum serviço para nós. Mas, como província, ela será um peso morto de qualquer lado, seja no nosso, seja no de nossos inimigos”.


Quanto mais os delegados participantes do congresso chegavam à conclusão de que as desavenças políticas entre as diversas colônias tinham por base, numa proporção importante, diferenças sociais e caracterológicas profundamente arraigadas, mais atraente se tornava o tipo de explicação apresentado por Adams, exatamente por estar fundamentado no pressuposto de que cada colônia possuía um caráter e identidade grupal distinta. Se, em termos culturais e políticos, os colonos eram todos britânicos num sentido geral, eles descobriram que a categoria britânico se manifestava de forma variada. John Adams, um dos mais argutos observadores dos seus colegas representantes, escreveu:


“O caráter dos cavalheiros nas quatro colônias da Nova Inglaterra difere tanto do caráter dos cavalheiros nas outras, como difere o da gente comum, ou seja, quase tanto quanto diversas nações distintas. Cavalheiros, homens sensatos ou com qualquer tipo de instrução nas outras colônias são muito mais raros em proporção do que na Nova Inglaterra. Os cavalheiros nas outras colônias tem grandes fazendas de escravos, e as pessoas do povo entre eles são ignorantes e muito pobres. Esse cavalheiros estão acostumados, habituados a noções mais elevadas de si mesmos e à distinção entre eles mesmos e as pessoas do povo, mais do que nós”.


“Uma alteração instantânea desse caráter de uma colônia, desse temperamento e daqueles sentimentos que seus habitantes absorveram como o leite materno, que cresceram acompanhando seu crescimento e se fortaleceram com sua força”, na opinião de Adams, não poderia “ser feita sem um milagre”. Embora ele expusesse a esperança de que “uma alteração da constituição sulista, que decerto se dará se a guerra continuar” fosse “aos poucos aproximar cada vez mais todo o continente sob todos os aspectos”, ele expressou seu temor das conseqüências, a curto prazo, “dessa dessemelhança de caráter”. “Sem a máxima cautela de ambas as partes e a paciência mais ponderada uma com a outra, bem como uma confederação mútua pautada pela prudência”, escreveu ele, com preocupação, “elas sem dúvida serão fatais”. “Num período como este, Senhor, em que treze colônias muito pouco familiarizadas umas com as outras estão se movimentando para formar uma única massa”, escreveu Adams a outro correspondente, “Seria um milagre se ingrediente tão heterogêneos não produzissem de início fermentações violentas”.


A acentuada heterogeneidade à qual Adams se referiu provou ser um desafio tremendo para os que esperavam criar uma união política duradoura. Embora não impedisse todas as colônias de vota pela independência e de se transformar em unidades políticas republicanas, essa heterogeneidade afetou profundamente o caráter do governo geral que lãs começaram a tentar construir no verão de 1776. Nas semanas imediatamente subseqüentes à declaração de independência, quando o congresso tratou pela primeira vez do complexo problema de criar uma união política duradoura entre as ex-colônias, ele descobriu rapidamente como essas diferenças eram de fato fundamentais. Os representantes discordavam obstinadamente quanto a coragem dos escravos como bens ou como pessoas na alocação de despesas governamentais; quanto a ser recomendável, ou não, aplicar impostos sobre o transporte de cargas; quanto a decisão de os estados com reivindicações de terras no oeste deverem ou não renunciar a elas em benefício do governo geral; quanto a ser a votação no Congresso por estados, pela população ou pela riqueza, e, o mais importante de tudo, como deveria ser distribuída a autoridade entre o governo nacional e os estados.


Alguns representantes uniram-se a John Witherspoon, reitor do College of New Jersey, na insistência por uma união forte e permanente. Argumentando que um “perigo comum é o maior e único meio eficaz para resolver dificuldades e harmonizar diferenças”, e ressaltando a eficácia do conflito corrente com a Grã-Bretanha “na criação de um tal grau de união entre todas as colônias, como ninguém teria profetizado e praticamente ninguém teria esperado”, Witherspoon insistia que nunca haveria um tempo mais propício para as colônias deixarem de lado sua invejas, superarem seus interesses e apegos locais e consolidarem uma união vigorosa e duradoura. “Se as colônias depois desta guerra se tornarem estados independentes, separados e desunidos” advertiu ele, “podemos ter certeza de termos saído da guerra em pior situação do que quando entramos”.


No entanto, muitos representantes adotavam uma perspectiva a prazo mais curto. Era assim que Benjamin Harrison, da Virgínia, defendia uma confederação “na qual deveriam ser definidos os objetivos da guerra, delineados os termos para sua conclusão, e as colônias da união deveriam comprometer-se umas com as outras para contribuir com sua respectiva força para alcançar esses objetivos. E, quando eles tivessem sido atingidos, que qualquer colônia isolada tivesse o direito de dizer que se recusava a prosseguir”. A defesa feita por Harrison de se proporcionar uma nítida estratégia de saída para aqueles estados que considerassem a confederação incompatível dificilmente indicava um compromisso profundo com a idéia de uma união permanente, muito menos qualquer sentido profundo de nacionalismo americano.


O combate a respeito da confederação desnudou uma diferença fundamental entre aqueles estados onde a escravidão era da máxima importância econômica e aqueles onde não era. Foi assim que James Wilson, da Pensilvânia, insistiu com vigor que deveriam incidir impostos sobre os escravos de tributação significaria que esses estados “não pagariam mais da metade do que deveriam”. Além disso, contrapôs ele, uma isenção dessa natureza seria “o maior incentivo para continuar a manter escravos e a aumentar seu número”, e os escravos, observou ele, impediam “os homens livres de cultivarem um país” e se “faziam acompanhar de muitos inconvenientes”. “Se formos debater se os escravos são seus bens” retrucou furioso o agricultor da Carolina do Sul Thomas Lynch, “será o fim da confederação. Se nossos escravos são bens nossos”, perguntou ele, “por que deveriam ser tributados mais do que a terra, as ovelhas, o gado, os cavalos, etc.?” Benjamin Franklin, representante da Pensilvânia, assim como Wilson, tinha uma resposta pronta. Os escravos, disse ele, enfraqueciam “mais do que” fortaleciam o Estado, “ e existe portanto, alguma diferença entre eles e as Ovelhas. Ovelhas jamais promovem insurreições”.


Nesse primeiros dias da união nacional americana, porém, a disseminação da escravidão não era o principal divisor de águas. Os representantes do Estado de Nova York para o sul tinham profundas reservas quanto às intenções da Nova Inglaterra ou daqueles aos quais se referiam como os “estados do leste”. Eram assim que o representante de Maryland, Samuel Chase, se preocupava com a possibilidade de que a “enorme vantagem no comércio” de que gozavam as “colônias do leste lhes desse uma superioridade”. Em carta ao representante de Nova York, John Day, Edward Rutledge, da Carolina do Sul, expressou seu temor de que os representantes da Nova Inglaterra tivessem uma “influência predominante na assembléia” e de “sua esperteza rasa, e aqueles princípios niveladores que os homens sem caráter e sem fortuna geralmente possuem, que são tão cativantes para a classe inferior da humanidade e que resultarão numa tamanha flutuação da noção de prosperidade que produzirá a máxima ordem”. “Se o plano ora proposto fosse adotado”, protestou Rutledge no verão de 1776, “sua conseqüência seria nada menos do que a ruína para algumas colônias. A idéia de destruir todas as distinções províncias e fazer com que todas as coisas mais diminutas se moldem ao que eles chamam de bem do todo”, observou ele, “é o mesmo que dizer, em outras palavras, que essa colônias devem se submeter ao governo das províncias do leste” Rutledge falou por muitos representantes quando manifestou sua decisão de “conferir ao congresso o mínimo de poder que seja absolutamente necessário e, para usar uma expressão familiar, manter o bastão de comando em nossas próprias mãos [ou seja nos estados], pois tenho certeza de que, se entregue às mãos de outros, será feito dele um uso extremamente pernicioso”. “A menos que sofra restrições importantes”, previu ele, a confederação jamais conseguiria ser aprovada, já que ela deve ser submetida a homens, nas respectivas províncias, que não se deixarão levar, ou melhor, serem forçados a aceitar medidas que possam preparar o alicerce de sua ruína [como províncias].


Naturalmente, a determinação de manter a preponderância do poder nas mãos dos estados não resultou inteiramente de invejas entre os estados e temores de dominação e ruína. Ela dispunha de sólida sustentação intelectual, resultante da lógica da argumentação constitucional americana em prol da exclusão da interferência da metrópole nos assuntos internos das colônias. Nenhum princípio tinha sido mais importante para a defesa colonial do que a doutrina de que o governo precisava ter por base o consenso. Como John Dickinson explicou aos habitantes de Quebec, no final de 1774, “o primeiro grande direito” da forma britânica de governo era o direito do povo de ter “uma participação no governo de si mesmos”. Através desse direito, escreveu ele, “garante-se ao povo ter seu próprio governo por representantes escolhidos por eles mesmos e, conseqüentemente, que serão regidos por leis que eles mesmos aprovaram, não por decretos de homens sobre os quais não têm controle algum”. Nesse estágio inicial da formação da nação, foram relativamente poucos os que questionaram a idéia de que os governos dos estados – nas palavras de Dickinson, “o próprio governo” do povo –, e não algum distante governo geral, seriam os melhores veículos para a proteção da vida, da liberdade e da propriedade, e os que exprimiam de modo mais direto as identidades e interesses do povo.


A profundidade desse apego aos governos estaduais associou-se à consciência cada vez mais ampla das dessemelhanças entre os estados e das suspeitas e invejas derivadas dessas dessemelhanças, de um modo que levou muitos representantes a perderem a esperança de um dia conseguir concretizar uma união viável. “Estou propenso a crer que jamais formaremos” uma confederação “com a qual todas as colônias estejam de acordo”, observou o representante da Carolina do Norte, Joseph Hewes, no final de julho de 1776. “As idéias do norte e do sul (ou como agora são designados corretamente como Leste e Oeste)”, relatou o representante de Connecticut, William Williams, em agosto de 1776, eram “distantes como os pólos”. Com esse nível de “conflito e disparidade de interesses, tanta diversidade de maneiras etc,” declarou ele, “tenho pouca esperança de qualquer tipo de união permanente”. O advogado da Pensilvânia, John Dickinson, autor do esboço inicial dos estatutos da confederação, foi um dos primeiros de muitos críticos a duvidar da possibilidade de sustentação de uma união formal e da possibilidade “de que em 20 ou 30 anos esta comunidade de colônias não se torne muito difícil de manejar - & o rio Hudson venha a ser um fronteira adequada para um comunidade separada para o norte”. “Tenho em minha mente uma forte impressão”, disse ele, de que uma visão dessa natureza “virá a ocorrer”.


Ao mesmo tempo que o Congresso avançava tão pouco no que John Adams chamou de “a mais complexa, mais importante, mais perigosa e delicada das tarefas” de projetar um governo nacional viável, as colônias individualmente estavam se transformando, com rapidez e sucesso, em unidade políticas republicanas. Já no outono de 1776, como Benjamin Rush informou a um correspondente francês, “novos governos” tinham sido “instituídos em todos os estados, alicerçados na autoridade do povo”. Já no início de 1777, apenas três estados – Nova York, Nova Hampshire e Massachusetts – não tinham adotado constituições formais, e Nova York e Nova Hampshire em breve o fariam. Além disso, essas constituições eram expressão de orgulho e lealdades locais, sendo em sua maioria endossados com carinho pela população da região. Por exemplo, depois que o Congresso Provincial da Carolina do Sul promulgou uma nova constituição na primavera de 1776 e selecionou novos dignitários, o povo teria reagido “com arroubos de alegria”. Quando as novas autoridades percorreram Charleston escoltadas por uma companhia de cavalaria, John Adams foi informado por dois homens que tinham chegado recentemente a Filadélfia, vindos da Carolina do Sul, que “as pessoas os contemplavam, com uma espécie de Enlevo. Os dois me disseram”, contou Adams “que a idéia de que esses senhores de sua própria escolha, em quem podiam confiar, e que poderiam substituir se algum deles se comportasse mal, os afetou tanto que eles não conseguiam conter as lágrimas”.


Embora as constituições dos diversos estados fossem semelhantes quanto a fundamentarem a autoridade política no consenso popular, atribuindo a primazia do poder à legislatura e prevendo eleições anuais de legisladores, elas diferiam entre si em muitos detalhes. Esses “detalhes” eram uma expressão da identidade que cada uma das colônias tinha desenvolvido ao longo da era colonial. É realmente digno de nota como essas constituições reproduziram, com uma veia republicana formal, os arranjos governamentais com os quais os colonos estavam familiarizados na era colonial. Em geral, como o representante da Carolina do Norte, William Hooper, observou no outono de 1776, essas constituições costumavam ser “quase tão semelhantes às antigas quanto possível, abolindo pouco mais do que os poderes reais e de donatários e derivando do povo todo o poder”. Ao estipular uma legislatura unicameral, que muitos representantes no Congresso consideraram “um sistema visionário”, até mesmo a Constituição da Pensilvânia, que continha mais inovações e provocou maior oposição, reproduzia a constituição colonial da Pensilvânia, que também operava sem uma segunda assembléia legislativa. Sem dúvida, alguns estados compreenderam algumas mudanças. Foi assim que John Adams elogiou as constituições da Carolina do Norte e da Virgínia, prematuramente no caso da Virgínia, por fazerem “um esforço pela destruição do sectarismo” ao abolir “seus dispositivos do episcopado a ponto de conceder completa liberdade de consciência a dissidentes, um ganho em prol dos direitos da humanidade”, acreditava ele, “que vale todo o sangue e toda a fortuna que já foram e ainda serão resgatados nesta guerra”. Por todas as colônias, porém, os elaboradores de constituições procuravam ater-se ao conhecido. Eles não refizeram fronteiras políticas, não mudaram a natureza do governo local, não alteraram a estrutura do sistema judiciário nem empreenderam nenhuma reforma geral dos antigos sistemas legais que tinham evoluído, durante o longo período colonial, para atender as condições específicas da vida e da “índole” ou identidade dos habitantes de cada estado. Pelo contrário, eles parecem ter agido com a disposição de espírito de uma observação do representante de Connecticut, William Wiliams, que afirmou ser “impossível que consigamos uma melhor [constituição] no todo do que a que nossos pais escolheram para nós e que há muito tempo cumprimos com grande paz e felicidade, e que quaisquer alterações ou inovações se fariam acompanhar de perigosas conseqüências”.


A rapidez com que os governos dos estados tomaram o poder e estabeleceram sua autoridade determinou efetivamente que as distinções provinciais, com todos “os preconceitos locais e interesses particulares”, bem como com as identidades específicas que eles envolviam, aumentassem de intensidade e contribuíssem para a perpetuação daquelas extremas “invejas umas das outras” que tinham vindo a tona nos primeiros dias da Revolução. Esse desdobramento tanto expressou quanto acentuou as antigas identidades provinciais pelas quais as pessoas em todos os estados originais continuavam a se definir. Na realidade, a composição do estado federal americano em sua forma inicial criou assim um cenário para a reiteração e intensificação de identidades provinciais. Tão fundamentais eram essa identidades e as distinções em que se baseavam que muitas pessoas chegavam a considerá-las definidoras. De fato, como o comerciante de Rhode Island Stephen Hopkins observou nos debates iniciais acerca da confederação, eles passaram a crer que “a segurança do todo” dependia “da distinção entre as colônias”. A revolução, como disse Silas Deane, de Connecticut, no início da luta, dizia respeito fundamentalmente a garantir “os privilégios particulares e locais, os direitos e imunidades de súditos britânicos americanos” da forma que esses direitos tinham sido usufruídos e se encontravam legalmente implantados nas diversas colônias. Essa ligação profunda com os direitos, maneiras e identidades locais teve enorme influência sobre a natureza do governo nacional e determinou que a lealdade que as pessoas tivessem para com ele fosse secundária em relação à lealdade primária que tinham para com seus próprios estados.


Enquanto se arrastavam os debates a respeito dos termos da confederação, os representantes ao congresso demonstraram escrúpulos consideráveis quanto a infringir os direitos dos estados. Thomas Burke, da Carolina do Norte, foi bastante eloqüente quanto a isso, negando que “dispositivos criados por Assembléias Continentais” devessem ser “pontos em vigor pela autoridade Continental”. Ele afirmava que fazer isso corresponderia a dar ao “Congresso um poder de derrubar todas as leis e constituições dos estados” pela criação de um poder dentro de cada estado que deveria agir com total independência em relação a elas, e que poderia confrontá-las diretamente’. “Em virtude desse poder”, advertiu ele, o Congresso poderia “tornar sem efeito todos os obstáculos estipulados nos estados para a segurança dos direitos dos cidadãos, pois”, explicou ele, se fosse concedido “um poder para agir coercivamente, isso teria de ser contra o súdito de algum estado, e o súdito de cada estado tinha direito à proteção daquele estado específico e estava sujeito às leis somente daquele estado, porque somente a elas ele deu seu consentimento.”


Na mesma disposição de espírito James Smith, um representante da Pensilvânia apresentou objeções a esforços para dar ao Congresso autoridade para instituir controles de preços e salários porque “uma recomendação dessa natureza interferiria com a política interna de cada estado”, que é um tema “de natureza por demais delicada para ser tratada no congresso”.


Dadas essa atitudes, não surpreende que os Estatutos com os quais o Congresso acabou concordando deixassem o peso preponderante da autoridade com os estados. Sempre alerta para qualquer dispositivo que pudesse deixar “nas mãos do futuro congresso... a possibilidade de fazer desaparecer todos os direitos que anteriormente pertenciam aos estados, ou de tornar seu poder tão ilimitado quanto quisessem”, Thomas Burke surpreendentemente encontrou pouca oposição à sua “emenda que sustentava o princípio de que todo o Poder soberano residia nos estados separadamente, e que seus atos particulares, que deveriam ser expressamente enumerados, seriam executados em conjunto, e não de outro modo; mas que, sob todos os outros aspectos, cada estado exerceria todos os direitos e poderes da soberania, sem controles externos”. Somente a Virgínia votou contra ele, com a abstenção de Nova Hampshire. Em sua forma final, a emenda de Burke, que se tornou o Artigo 2 dos Estatutos da Confederação, estabelecia que “cada estado retém sua soberania, liberdade e independência, bem como todo poder, jurisdição e direito que não estejam por meio desta confederação expressamente delegados aos Estados Unidos, no Congresso em Assembléia”.


Burke interpretou seu triunfo como um passo necessário para a perpetuação de um fraco governo nacional e se regozijou com a facilidade com que o obteve. “Fiquei muito satisfeito de descobrir que a opinião favorável à acumulação de poderes no Congresso tinha tão poucos simpatizantes, e posso garantir que, nessa história toda, minhas idéias a esse respeito se revelarão praticamente semelhantes às da maioria dos estados”, escreveu Burke a seu colega representante da Carolina do Norte, Richard Caswell. “Resumindo, senhor, sou da opinião de que o Congresso deveria ter poderes suficientes para convocar e aplicar a força comum pela defesa comum, mas não para os objetivos parciais da ambição”. Ele também não acreditava que a jurisdição do governo nacional devesse se estender até o comércio. “Os Estados Unidos deveriam ser como uma (potência) soberana em relação a potências estrangeiras quanto a todos os aspectos relacionados à guerra ou em que os estados tenham um interesse comum”, argumentou ele no Congresso em dezembro de 1777. “Mas em todas as relações pacíficas, de natureza comercial ou não, ele deveriam ser como Estados soberanos separados”. Após sua vitória, Burke referiu-se ao Congresso como “a assembléia unida dos estados livres, independentes e soberanos, da América”, ressaltando assim, de modo explícito, seu caráter limitado.


O desejo predominante de manter a “independência separada” e as identidades dos estados determinou, portanto, que o governo nacional tivesse poderes limitados e ao mesmo tempo despertasse pouco afeto nos Estados Unidos como um todo. Ao longo da guerra e mesmo depois dela, os governos estaduais e municipais continuaram a ser os foros primordiais para a concretização dos objetivos políticos do povo e os locais principais para interação dos cidadãos com seu governo. Mesmo enquanto a própria guerra atraía atenção para a causa comum e estimulava a formação de um patriotismo nacional rudimentar, essas condições atuavam no sentido de reforçar a antiga identificação de cada povo com seu estado.


Com a ratificação dos Estatutos da Confederação de 1781, os Estados Unidos conseguiram uma estrutura formal de governo nacional, mas muitos líderes do Congresso duvidaram que ela durasse. Quando James M. Varnum se tornou representante do Rhode Island, em 1781, ele encontrou o Congresso impedido de atuar em razão da preocupação dos representantes de proteger os direitos e interesses de seus respectivos estados. Essa preocupação, relatou ele, “frustrava toda tentativa de introdução de um sistema mais eficaz”. Conseqüentemente, queixou-se ele, o Congresso passava o tempo “em questões executivas banais, enquanto assuntos da maior magnitude” eram “postergados ou rejeitados como se, em sua natureza, subvertessem a liberdade democrática”, que os representantes equipavam à continuidade da supremacia dos estados”. Uma cautela prudente contra o abuso do poder”, salientou ele, “é muito necessário para sustentar os princípios dos governos republicanos, mas, quando essa cautela é exagerada, essa ocorrência pode e provavelmente há de se tornar alarmante”. “Não está distante a hora”, conjecturou ele, “em que o atual Congresso Americano será dissolvido ou deixado de lado por ser inútil, a menos que uma mudança de procedimento torne sua autoridade mais respeitável”. Alguns meses depois, o representante da Virgínia James Madison, recomendou à legislatura de seu estado que ela deveria “pressupor que a atual União pouco” sobreviveria “à guerra em andamento”.


Nem durante os últimos anos da guerra, nem com a paz, mudaram as perspectivas de continuidade da união. Era notória a lentidão de alguns estados em pagar suas cotas requisitadas pelo Congresso para sustentar a guerra. Representantes dedicados à perpetuação da união, como James Madison, argumentavam em vão que essas requisições “eram lei para os estados tanto quanto as leis destes últimos o eram para os cidadãos individuais: que a constituição federal era tão sagrada e compulsória quanto as constituições internas dos diversos estados, e que nada poderia justificar a desobediência dos estados a atos sancionados por ela”. Entretanto, os estados estavam em posição de superioridade, e cada um agia como bem entendia. “Havia nos estados”, lamentava-se James Wilson, “uma força mais centrífuga do que centrípeta”.


Essa situação de incerteza levou a uma necessidade de conferir ao governo nacional pelo menos um poder limitado de tributação, mas esse tipo de demanda invariavelmente enfrentava forte oposição. Foi assim que Arthur Lee, um representante da Virgínia, previu, no inverno de 1783, que os estados “jamais concordariam com aqueles planos que procuraram aumentar” a autoridade nacional porque eles “tem inveja do poder do Congresso”. Admitindo “ser ele mesmo um dos que consideravam essa inveja razoável” Lee afirmou que “ninguém que tivesse aberto uma página que fosse, ou lido apenas uma linha sobre o tema da liberdade, poderia se manter insensível ao perigo de entregar a bolsa à mesma mão que manejava a espada”. Era evidente que Lee falava por muitos representantes quando avisou numa ocasião subseqüente que “ele preferia ver o Congresso como uma instituição fraca do que como um pulso de ferro”.


Nessa situação, muitos representantes acreditavam que a união não poderia persistir em sua forma corrente. “É agora idéia geral no Congresso”, relatou o congressista de Massachusetts Stephen Higginson, no verão de 1783, “que a atual Confederação não resistirá mais” e que “uma dissolução deve ocupar seu lugar,... & e eu espero que seja de modo racional como quando a moeda antiga é declarada inadequada e posta de lado”. Houve quem previsse a guerra civil entre os estados. Outros imaginaram que os treze estados se dividiriam em confederações menores, unidas meramente para fins de defesa. Assim, no início de 1783, Nathaniel Gorum, de Massachusetts, argumentando “que a União jamais poderia ser mantida com qualquer outra base a não ser a da justiça” e salientando que “alguns estados tinham sofrido enormemente pelas deficiências de outros”, afirmou que “se não fosse possível obter justiça através do sistema federal e esse sistema fracassasse, como se daria necessariamente estava na hora de esse fato ser divulgado para que alguns estados pudessem formar outras confederações adequadas ao objetivo de sua segurança”.


No verão de 1783, Charles Thomson, secretário de longa data do Congresso, explicitou as forças e a lógica por trás de uma dissolução dessas e especulou sobre a forma que confederações separadas assumiriam e por que motivo. “Eliminado o perigo comum que, até o momento, mantinha esses estados juntos, vejo preconceitos, paixões e opiniões locais que já começam a operar com toda a força”, escreveu Thomson, sublinhando a continuada primazia das identidades dos estados na organização da consciência política dos americanos. “E confesso que tenho meus receios de que as previsões de nossos inimigos se revelem verdadeiras, de que, com a eliminação do perigo comum, nossa Confederação e União se revelem fracas e ilusórias. Sem dúvida, deverá haver e haverá, em nome da segurança, alguma confederação de estados” E prosseguiu: “Mas ainda é incerto quantos dos estados estarão incluídos numa confederação ou quantas confederações existirão.”


Ao especular sobre o número e a natureza dessas confederações, Thomson salientou a importância de semelhanças em interesses, maneiras, composição demográfica e identidades. Ele previu a formação de quatro confederações separadas. Os “quatro estados do leste” na Nova Inglaterra prognosticaram “formarão uma confederação” porque suas “maneiras, costumes e governo” eram “muito semelhantes” e porque eram “um povo sem miscigenação, sendo todos originários de uma linhagem comum sem qualquer acréscimo importante de forasteiros ou estrangeiros”. Nova York, acreditava ele, seria “forçada a se unir a confederação fosse de livre vontade, fosse pela força, não por nenhuma das causas mencionadas anteriormente, mas porque os estados do leste não se considerariam seguros se o rio Hudson e os lagos do norte, que são as chaves do país, ficassem nas mãos de um povo independente e separado deles. Com esse objetivo, o estado de Vermont, que até o momento deu a NY algum, receberá apoio e incentivo e será mantido como um vara acima da cabeça de NY a ser usada, se necessário, para castigá-lo e forçá-lo a entrar para a Confederação do Leste”. Porque todos eles eram “estados cujas fronteiras são fixas e confinadas, e por terem um forte desejo comum de ter uma participação no vasto território a oeste, que agora reivindicam como seu direito e como uma aquisição que a confederação atual obteve a custa do seu sangue e fortuna”, os estados centrais de Nova Jersey, Pensilvânia, Delaware e Maryland, conjecturou Thomson, formariam uma segunda união.


Para Thomson, a Virgínia, o maior e mais populoso dos estados, comporia uma nação por si só. “A arrogância da Virgínia, sua vasta extensão e suas reivindicações sem limites”, escreveu ele, haveriam de “induzi-la a se estabelecer sozinha”, e, “se um dia um governo monárquico se instalar na América do Norte”, a Virgínia seria o local onde ele “primeiro estabeleceria seu trono”. A “primeira disputa” da Virgínia, especulava Thomson, seria “com a confederação dos estados centrais quanto ao território do oeste. A menos que, talvez as pessoas do outro lado das montanhas Allegheny fossem levadas primeiro a se estabelecer e reivindicar direito exclusivo sobre aquele território. Nesse caso, a Virgínia poderia tentar subjugá-las e a confederação dos estados centrais as apoiaria contra ela, que poderia então tentar formar uma aliança com a confederação do leste ou com os três estados do sul”. Por fim, Thomson sugeriu ser provável que os três estados do sul, a Carolina do Norte, a Carolina do Sul e a Geórgia formassem uma liga, “mas sem uma confederação fechada. Pois”, explicou ele, “tal é o orgulho impetuoso da Carolina do Sul, tamanha a dissipação da sua moral e sua insolência resultante das multidões de escravos, que ela não entrará de bom grado para nenhuma União enquanto não adquirir algum bom senso através de muito sofrimento”. Dividida desse modo em confederações rivais, “a América”, preocupava-se Thomson, “pode ser o teatro da guerra e suas assembléias podem se tornar famosas por brigas e intrigas sobre decisões políticas”.


Thomson e outros observadores que previram o colapso precoce da primeira união nacional americana após a paz estavam equivocados. A confederação não desmoronou. Em vez disso, ela prosseguiu trôpega, mais ou menos como durante a guerra. Na teoria, como Nathan Dane, um representante de Massachusetts, salientou em 1786, a confederação proporcionava “uma justa divisão do poder entre uma liderança federal e as legislaturas dos estados”, com o congresso mantendo “as armas da guerra e as palmas da paz” e os estados tendo jurisdição sobre todos os outros aspectos das relações públicas e internas. No entanto, esse relacionamento estava longe de ser equilibrado. Como ele passou a explicar, “os respectivos estados” mantinham a vantagem. Eram eles que controlavam “o dinheiro que ia para União, o poder de criar o Congresso anualmente... [,] reconvocando seus membros à vontade e regulando os pagamentos por seus serviços”. O resultado era que os representantes geralmente expressavam as opiniões e as identidades dos estados que representavam. “É raro que vejamos um membro do Congresso se afastar das opiniões de seu estado”, escreveu Dane. “Muito embora ele esteja plenamente convencido de que essa opinião está baseada em fatos equivocados e que seria abandonada pelo estado caso tomasse conhecimento da verdadeira situação das coisas e da informação que ele possui”, disse Dane, “ele abrigará para sempre dúvidas quanto a estar ou não em seu poder induzir seus eleitores a modificar a opinião e a concordar com ele”. Mesmo assim, Dane tinha “poucas dúvidas de que sempre será mais seguro deixar que a balança do poder se incline a favor das respectivas legislaturas [,] visto que cada uma não está assim tão afastada do povo”. No esquema americano de governo que funcionou entre 1775 e 1787, o congresso, como Nathaniel Gorham observou pouco mais de um ano antes da convenção federal de 1787, não passava de “um vestígio de um governo”.


Os governos nacionais no poder durante a guerra e os períodos da Confederação eram fracos demais, sujeitos demais á vontade dos estados e distantes demais da vida da maior parte do povo para gerar um sentido nacional de identidade coletiva forte o suficiente para desafiar as identidades dos estados separados. Formada nas sombras daquelas identidades mais antigas e infinitamente mais imediatas, e coexistindo com elas, a identidade nacional americana permaneceu embrionária e superficial. As diversas manifestações literárias e culturais do patriotismo americano durante a revolução, e depois dela, são enganosas. Na nova e complexa unidade política nacional americana, as identidades dos estados por muito tempo, continuariam a ter importância central.


Para compreender plenamente a natureza da identidade coletiva no início da república, os historiadores precisam aprender a aceitar suas raízes coloniais e variantes provinciais. As poderosas identidades dos estados, herdadas da era colonial, e as lealdades, hábitos e preconceitos provinciais profundamente arraigados que elas expressavam representaram um desafio tremendo para os que esperavam criar uma união nacional durável. A união contingencial e orientada para a guerra que foi composta às pressas em 1775-76 pouco fez para promover uma profunda identidade nacional que rivalizasse com ela, e a Constituição de 1787 proporcionou uma estrutura na qual as identidades dos estados poderiam facilmente coexistir com um emergente sentido de identidade nacional americana e até mesmo manter boa parte de sua vitalidade. Como, durante o início do século XIX, essas identidades dos estados interagiram com exigências de uma identidade nacional maior, e se, quando e como elas poderiam ter se fundido com uma identidade dessas, ou sido superadas por ela, são questões interessantes e difíceis que os acadêmicos mal começaram a estudar. A guerra de Secessão poderia ser vista como uma indicação de como o sentimento da nação ainda era frágil. Talvez a busca por respostas e essas perguntas deva se concentrar numa época muito posterior.


quarta-feira, 4 de maio de 2011

A Formação da Classe Operária e Projetos de Identidade Coletiva





A Formação da Classe Operária e Projetos de Identidade Coletiva





Cláudio BATALHA
In: Jorge FERREIRA e Lucilia de Almeida Neves DELGADO.




O Brasil Republicano. Vo.1. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2003
Da página 163 a 189

A formação da Classe operária: Um fenômeno econômico?

A formação da classe operária é freqüentemente pensada como um fenômeno puramente econômico associado ao surgimento da indústria. Desse modo, a classe operária no Brasil costuma ter sua origem associada ao surto de industrialização da década de 1880, quando o número de estabelecimentos industriais triplica, passando de pouco mais de 200 em 1881 para mais de 600 em 1889 (Prado Júnio, 1976, p.259)


Notas da Vera Pensada como fenômeno puramente econômico associado ao surgimento da indústria

Uma das críticas aos estudos calcados nessa perspectiva é que “tomavam a classe como um efeito quase mecânico da estrutura produtiva” (Petersen, 2001. P.13), deixando de considerar que a existência de trabalhadores fabris, em si, não assegura a existência de uma classe, o que pressupõe interesses coletivos constituídos na experiência comum. A formação de uma classe é portanto, um processo mais ou menos demorado, cujos resultados podem ser verificados na medida em que concepções, ações e instituições coletivas, de classe, tornaram-se uma realidade.

Há, igualmente, análises que, além do surgimento da indústria, associam a formação da classe operária à plena imposição do trabalho assalariado sem a concorrência do trabalho escravo. Nesse concepção a escravidão dificultaria e até entravaria o processo de formação do proletariado como classe. (Foot e Leonardi, 1982. P.109), partindo de uma suposta oposição entre trabalho escravo e trabalho livre, que, na prática, está longe de ser verificada, posto que, até mesmo em fábricas, as duas formas de trabalho podiam coexistir. Além de não considerar os escravos como sujeitos dotados de qualquer autonomia, essa produção sacralizou uma divisão por períodos da história do trabalho fundada exclusivamente em critérios econômicos e em marcos políticos (como 1889, 1930 e assim por diante) incapaz de perceber continuidades de uma período para outro, e sobretudo, desatenta para dinâmica específica do processo de formação da classe operária.

Em um caso como no outro – o crescimento industrial da década de 1880 ou a abolição da escravidão -, seriam determinações objetivas, independentes do modo como os homens e as mulheres inseridos no trabalho fabril viam a si próprios e as relações a que estavam submetidos, que configurariam a existência de uma classe operária. Evidentemente, isso não quer dizer que o processo de trabalho, o tipo de estabelecimento industrial, o grau de mecanização da produção, o número de trabalhadores por empresa fossem fatores irrelevantes na experiência dos trabalhadores. No entanto, isso não deve conduzir a estabelecer uma relação automática entre a forma assumida pelo trabalho e a existência da classe operária, que, mais que uma decorrência da forma de trabalho, é o modo como esses trabalhadores se percebem.

A composição da Classe Operária

A imagem associada à classe operária na Primeira República é de que esta foi “branca, fabril e masculina”. Cada um desses atributos falseia a realidade ao seu modo.

Falar de uma classe operária “branca”, composta em sua maioria de imigrantes europeus, é sem dúvida uma avaliação globalmente correta para os Estados de São Paulo e do Sul, mas desconsidera o peso do operariado “nacional”, com significativa participação de negros, mulatos no restante do país. Além disso, mesmo em estados com grande presença de imigrantes europeus, há situações particulares que contradizem a generalização de uma classe operária branca e estrangeira, caso das cidades do Rio Grande e, mais particularmente, de Pelotas, no Rio Grande do Sul (Loner, 2001, p.85).

Por outro lado, o caráter fabril do operariado foi grandemente exagerado nas fontes disponíveis, pois, de modo geral, os levantamentos públicos e privados do período tenderam a desconsiderar as manufaturas e oficinas, com pequeno número de operários e com trabalho manual. Ainda assim, em 1907, um levantamento realizado pelo Centro Industrial do Brasil no Rio de Janeiro – então a capital da República e ainda não superada por São Paulo como principal cidade industrial do país – apontava para o predomínio de médias empresas, que, segundo os critérios adotados nesse caso, eram as empresas que possuíam entre seis e 40 operários (Lobo, 1978, p.487-488). A despeito do caráter parcial desse levantamento e dos discutíveis critérios que consideravam como grandes empresas aquelas que tivessem mais de 40 operários, nele as pequenas e médias empresas correspondiam a 72% do total. Nesse quadro, o trabalho em indústrias modernas e mecanizadas, como as têxteis, que reuniam centenas e até milhares de operários, representava ainda uma experiência vivida por uma minoria, ainda que numericamente muito expressiva, dos trabalhadores.

Por fim, no que diz respeito à dimensão masculina da classe operária, de fato na Primeira República prevalecem os homens no trabalho manufatureiro e industrial. Entretanto, a mão-de-obra feminina foi muito significativa em ramos como têxtil e o de vestuário, chegando a ser majoritária em alguns lugares. De qualquer modo, o que é importante ressaltar é que o peso do trabalho feminino este sub-representado na face mais visível da classe operária – suas organizações, inclusive na organização de setores que contavam com presença significativa e até mesmo majoritária de mulheres, como nas associações de trabalhadores têxteis, elas estavam quase invariavelmente ausentes dos quadros diretores. As uniões de costureiras, surgidas em 1919, no Rio de Janeiro e na cidade de São Paulo, estão entre as poucas exceções de organizações sindicais compostas e dirigidas por trabalhadores e assim mesmo por se tratar de um setor exclusivamente feminino.

Imigração e Organização Operária

“É desnecessário ressaltar o imenso significado da imigração no surgimento de ideologias negadoras do sistema vigente no país e na adoção de modelos organizatórios pela classe operária.” (Fausto, 1977. P.32)

Durante muito tempo vigorou a tese de que havia uma correlação direta entre a maciça presença de imigrantes no Sudeste e no Sul do país e a militância do movimento operário e a difusão de certas ideologias, como fica evidente na citação acima. Na medida, porém, em que os estudos sobre a imigração se aprofundarem, essa relação passou a ser vista como crescente reserva. Afinal, o que esses estudos mostraram é que a imensa maioria dos imigrantes provinha do campo e, na maioria das vezes, não tinha qualquer experiência prévia de engajamento sindical ou político. Isso, evidentemente, não quer dizer que não existissem imigrantes com experiência prévia nos seus países de origem e cuja emigração se devia não a razões de ordem econômica, mas a problemas políticos. Particularmente entre os militantes operários em São Paulo, é possível encontrar vários casos eu se encaixam nesse perfil.

Paradoxalmente a composição étnica pode ser vista mais como um elemento de dissenso do que de consenso entre os trabalhadores. A origem rural da imensa maioria dos imigrantes, sem experiência sindical ou política anterior, à perspectiva da ascensão social e as diferenças culturais, tanto entre os diferentes grupos de imigrantes como destes com relação ao operariado nativo, que freqüentemente resultam em conflitos étnicos, são alguns fatores que dificultam a organização operária (Hall e Pinheiro, 1990) Entretanto, se não há dúvida quanto à existência desses fatores, é muito difícil avaliar o seu peso efetivo e em que momentos tendem a exercer maior influência. No caso dos conflitos étnicos, por exemplo – sobre o quais não faltam testemunhos, - resta saber em que medida se trata de um fenômeno derivado da xenofobia e de identidade nacionais antagônicas dentro do movimento operário ou se trata-se de um fenômeno conjuntural, relacionado, por exemplo, como momentos de maior disputa pelo mercado de trabalho.

Se o mito do imigrante militante, que traz da Europa experiência sindical e política, incapaz de se sustentar diante da evidência empírica que mostrava uma maioria de imigrantes provenientes de áreas rurais atrasadas nos seus países de origem, foi, em grande medida, abandonado nos estudos recentes, outros argumentos também contribuíram para enfraquecer esse tipo de interpretação. É lembrado, por exemplo, com pertinência, de que a própria opção pela emigração para fugir da miséria mostra a inexistência de uma crença na possibilidade de mudança da situação através da ação sindica ou política (Maram, 1977, p.189)

Nos países em que a imigração teve um peso fundamental, como no Brasil, entre os fatores que dificultam a organização operária, em primeiro lugar, costumam figurar as divisões étnicas e os conflitos que delas derivam. Além dos problemas que naturalmente decorrem da convivência de grupos étnicos que nem ao menos possuem uma língua comum, há problemas entre os grupos instalados há mais tempo nos centros urbanos brasileiros e os de chegada mais recente. Isso vale tanto para os conflitos entre brasileiros e imigrantes, como para os conflitos entre diferentes grupos étnicos de imigrantes.

As avaliações feitas pelos militantes da época tendem a confirmar a idéia de que a imigração podia, em muitos casos, ser uma fonte de dificuldade para a organização operária. Como escreveu o socialista italiano Alceste de Ambris: “[...] não se deve esquecer que a classe trabalhadora no Brasil é constituída de elementos díspares e variados em raça, língua, temperamento, cultura e hábitos, o que torna mais difícil o entendimento e a organização”.

Outra dimensão da “cultura” do imigrante freqüentemente apontada por observadores contemporâneos, e que reforça sua resistência a ação de classe, é a perspectiva de “fazer a América”, ou seja, de enriquecer e voltar ao país de origem. Mas a despeito do índice relativamente alto de retorno – 45% no caso do estado de São Paulo -, como aponta Michael Hall, há pouca evidência de que os que retornam tivessem efetivamente conseguido alcançar o objetivo de enriquecer (Hall, 1975, p.400) por outro lado, se a perspectiva de enriquecimento rápido podia estar presente no imigrante pouco depois de sua chegada, é pouco provável que com o passar dos anos, e diante das dificuldades enfrentadas, essa crença se mantivesse, como pertinentemente sugeriu Sheldon Maram ao analisar a participação de operários estrangeiros nos movimentos grevistas de 1817-1920 (Maram, 1977. P 192)

Se o conflitos étnicos são freqüentes, quase sempre assumem o caráter de uma oposição entre setores organizados e não organizados de proletariado. Grevistas contra não-grevistas ou fura greves. Trabalhadores empregados e protegidos por sua organização sindical contra recém chegados desvinculados de uma organização profissional. São raros os conflitos envolvendo dos dois lados categorias organizadas que assumem uma dimensão étnica. Um dos poucos casos conhecidos foi o conflito violento que se seguiu a eleição para a diretoria da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, no Rio de Janeiro em 1908, de uma chapa que contava com a presença de imigrantes, enquanto a maioria da categoria era composta por negros e mulatos, que até então dominavam as diretorias (Maram, 1979, p.31) Mesmo nesse caso, porém, é discutível até que ponto a composição étnica de cada um dos grupos explica o conflito, posto que não faltam outros exemplos de confrontos físicos violentos entre facções dos sindicatos portuários do Rio de Janeiro sem que a diferença étnica estivesse presente. Pode-se até falar de uma cultura da violência nas associações portuárias tanto no Rio de Janeiro como em Santos, que não tem qualquer ligação direta com a oposição entre grupos étnicos (Gitahy, 1992, p. 122)

Por outro lado, se há uma série de categorias profissionais que são dominadas por determinados grupos étnicos, o que freqüentemente provoca o afastamento dos trabalhadores de outras etnias das organizações profissionais controladas pelo grupo majoritário, a organização dos trabalhadores com base na nacionalidade é relativamente pouco significativa. Assim, Michael Hall (1975, p. 398) cita o exemplo, entre os chapeleiros de São Paulo na década de 1890, dos trabalhadores brasileiros, alemães, espanhóis e portugueses que se sentiam marginalizados pelos italianos, que controlavam a associação da categoria, onde o italiano prevalecia como língua até nos estatutos. Parece provável, portanto, que grupos nacionais minoritários enfrentassem algum grau de dificuldade em categorias como os vidreiros da Água Branca, em São Paulo, de maioria francesa, os trabalhadores de cafés, bares e restaurantes no Rio de Janeiro, de maioria espanhola, ou a construção civil em Santos, de maioria portuguesa. Nesse sentido, seria lógico supor que, se a identidade étnica fosse um fator fundamental em meio ao operariado organizado, proliferariam associações operárias organizadas exclusivamente com base na nacionalidade ou na origem étnica, mas os exemplos nesse sentido são pouco numerosos. No Rio de Janeiro existiu, nos primeiros anos do século XX, uma Liga Operária Italiana que desapareceu depois do Primeiro Congresso Operário Brasileiro de 1906. Já em São Paulo, a mais célebre associação estrangeira foi a associação dos trabalhadores alemães. Allgemeiner Deutscher Arbeiterverein, de orientação Social Democrata, ativa da década de 1890 até pelo menos a de 1920, sem, no entanto, jamais ter desempenhado um papel de peso no conjunto do movimento operário.

No início de 1913 o movimento operário chegou a organizar uma campanha contra a emigração para o Brasil, decidindo, em reuniões realizadas no Rio de Janeiro, em Santos e em São Paulo, pelo envio de representantes à Europa a fim de fazer propaganda. Essa campanha porém, longe de representar uma reação contra os imigrantes, visava fazer conhecer aos candidatos potenciais à emigração, assim como aos seus governos, as condições desfavoráveis que encontrariam no Brasil. Tratava-se da resposta dada pelo movimento às expulsões de operários imigrantes que participaram das greves em Santos em 1912 e à ampliação dos dispositivos da Lei de Expulsão de Estrangeiros de 1907, aprovada pelo Congresso Nacional em 1913 (Gitahy, 1922, p.69-71)

O que mais tem mudado com as análises mais recentes é a tendência a matizar a avaliação – que passou a vigorar como reação ao automatismo da relação entre imigração e militância – de que muitas vezes a imigração continha em si elementos capazes de dificultar a organização operária. Todavia, mesmo levando em conta diferenças étnicas, religiosas, regionais e lingüísticas que podem contribuir para a divisão do operariado, essa tendência busca não as superestimar. As dificuldades de comunicação entre imigrantes provenientes de diferentes regiões da Itália, por exemplo, são menos significativas entre imigrantes adultos, homens que prestaram serviço militar antes de emigrarem, onde tiveram no italiano a língua comum (Biondi, 2002) do que podem parecer em um primeiro momento. Entretanto, a experiência comum entre originários de regiões diversas ao longo do serviço militar não significou necessariamente que a identidade nacional suplantaria no curto prazo as identidades regionais. Uma demonstração disso é que até 1896 nas cidades de São Paulo, ao passo que existiam organizações de alemães, franceses, espanhóis, portugueses, não existia uma organização comum dos italianos, mas uma série de associações regionais de meridionais, calabreses, vênetos e etc.. (Trento, 1990. P.41).

A conclusão a ser tirada da produção que relaciona a imigração com formação da classe operária no Brasil é o abandono por completo das análises fundadas em determinações estruturais, que podiam conduzir a ver necessariamente em todo imigrante um anarquista, ou ao contrário, percebê-lo como exclusivamente movido pelo interesse individual de enriquecimento, o que tornaria implausível sua participação em movimentos coletivos. Se existiam dificuldades objetivas para a organização coletiva dos imigrantes e das classes trabalhadoras de modo geral, não faltaram exemplos, ao longo da história da Primeiro República, de momentos em que essas dificuldades foram suplantadas.

A Classe como Manifestação Histórica

Os segmentos da classe operária que mais facilmente se organizaram, em muitos casos desde o século XIX, foram os trabalhadores qualificados, detentores de um ofício. Tipógrafos, alfaiates, sapateiros, pedreiros, marceneiros, padeiros estavam a frente da mobilização operária de Belém a Porto Alegre. Esses trabalhadores geralmente não eram mais artesãos independentes, mas assalariados submetidos a um patrão; no entanto, detinham um saber de ofício que lhes conferia um certo poder de barganhar nas negociações por melhores salários ou condições de trabalho. Além disso, estavam mais protegidos do infortúnio que os trabalhadores desqualificados, por serem mais bem pagos e possuírem maior facilidade de colocação no mercado de trabalho, mas também por contarem com mecanismos de proteção contra doenças e mesmo o eventual desemprego, quer através de sociedades mutualistas de ofício, quer através dos seus sindicatos. Essas características não eram um exclusividade do caso brasileiro, pois, mesmo em países europeus industrializados, até 1914, a base do movimento operário era constituída pelos trabalhadores qualificados, e a maioria dos trabalhadores, isto é, os desqualificados, estava fora dos sindicatos (Geary, 1984. P. 16-17)

A despeito da situação vantajosa dos trabalhadores qualificados, se comparados aos sem qualificação, as transformações na produção capitalista e no processo de trabalho ameaçavam essa situação. Em muitos setores esses trabalhadores de ofício viam sua importância decrescer com a introdução de novas técnicas de produção, de mecanização e de mão-de-obra mais barata, como o trabalho feminino. A nostalgia de um passado idealizado do artesão e o lamento da arte (saber de ofício) perdida marcam o discurso dos porta-vozes desses trabalhadores.

Em janeiro de 1913, no Rio de Janeiro, o socialista Mariano Garcia, que fora cigarreiro, ao comentar sobre a situação de sua categoria e a perspectiva de que a Sociedade Beneficente dos Cigarreiros viesse a desaparecer por falta de gente disposta a assumir a diretoria, atribuía as dificuldades à mecanização da produção e à introdução do trabalho de mulheres, que haviam acarretado a queda de salários e o afastamento de antigos cigarreiros.

Como resposta ao processo de desqualificação, mecanismos de controle do aprendizado chegaram a ser propostos por sociedades operárias, como a União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo, que, em 1905, propôs a criação de uma Escola do Livro com esse intuito (Vitorino, 2000, p.145-146).

Sob a liderança de trabalhadores qualificados de ofício, o movimento operário foi moldado pelo discurso e pelas formas de organização desses trabalhadores. Até 1917, em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, os trabalhadores fabris tiveram pouco peso na condução do movimento operário, a despeito de ser o setor que mais crescia e cujas empresas reuniam o maior número de operários. O próprio predomínio, até a segunda metade da década de 1910, de organizações sindicais fundadas sobre o ofício em detrimento das organizações baseadas no ramo de atividade ou no setor industrial dificultava uma maior participação de operários fabris nos movimentos coletivos. Os vários ofícios da construção civil foram reunidos no Rio de Janeiro, em 1915, pela União Geral da Construção Civil, que logo se desarticulou, voltando a organizar-se em 1917. Em São Paulo, a união dos ofícios desse setor ocorre em 1919 com a formação da Liga Operária da Construção Civil. Fenômeno semelhante se produziu entre os metalúrgicos, que só foram unificados no Rio de Janeiro em 1917, na União dos Operários Metalúrgicos. A principal exceção a essa lógica é o caso dos operários têxteis, cujas organizações desde os primeiros anos do século XX foram formadas com base na indústria, mas tinham inúmeras dificuldades para mobilizar o grande número de trabalhadores do setor.

No entanto, sem em grande medida o movimento operário das primeiras décadas do século XX é moldado pelos trabalhadores qualificados de ofício, isso em absoluto não significa endossar a teoria de que doutrinas como o anarquismo seriam características de trabalhadores ainda não plenamente inseridos no trabalho industrial. Esse tipo de visão é marcada por um viés ideológico que pressupõe que trabalhadores industrializados deveriam adotar como ideário um socialismo de cunho marxista. Implica, portanto, uma valorização desse último e uma percepção negativa do anarquismo. Entretanto, tanto o socialismo com o anarquismo eram doutrinas presentes nesse movimento operário. O que levou o anarquismo a suplantar o socialismo na preferência de muitos militantes operários deve-se menos às características do tipo de trabalhador que militava nesse movimento e muito mais às condições políticas do Brasil da Primeira República. Pois é difícil supor que um socialismo em grande parte voltado para mudanças através do processo eleitoral, que distingue o Socialismo da Segunda Internacional, pudesse florescer em um quadro político em que o espaço para a participação eleitoral dos trabalhadores fosse tão limitado quanto o caso brasileiro. Entretanto, como veremos adiante, essa aplicação está longe de ser satisfatória.

A organização dos trabalhadores, fossem eles qualificados ou não, é um traço marcante do Brasil da Primeira República. O volume de associações criadas tendia a ser particularmente visível em momentos de ascenso do movimento operário, quando condições econômicas favoráveis conferiam um maior poder de barganha ao operariado e os movimentos grevistas tinham maiores chances de sucesso. Assim, de 1917 a 1919, nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, foram criadas mais organizações operárias do que em qualquer outro período de tempo equivalente. Essa tendência pode ser lida como um indicativo do caráter efêmero das sociedades operárias e de sua instabilidade, mas também pode ser interpretada como um demonstração de que, a despeito de condições adversas (recessão econômica, repressão e etc.) que podiam conduzir ao fechamento das associações, a cada conjuntura mais favorável, o operariado esta propenso a reconstituir e ampliar sua organização.

Os momentos de mobilização em várias cidades brasileiras, como as greves de 1902-1903, 1906-1907, 1917-1919, ou o movimento contra a carestia de vida de 1913, apontam para uma outra questão: a de que esses momentos ímpares da ação coletiva envolviam muito mais gente do que o número restrito de trabalhadores – sobretudo qualificados – pertencentes às sociedades operárias. São nesses processos que a classe como um realidade histórica aparece na medida em que os interesses coletivos se sobrepõem aos interesses individuais e corporativos. É então que podemos falar de formação de classe operária, não como resultado mecânico da existência da indústria ou da abolição da escravidão, mas como um processo conflituoso, marcado por avanços e recuos, pelo fazer-se da classe, que surge na organização, na ação coletiva, em toda a manifestação que afirma seu caráter de classe.

Qual República?

A grande esperança suscitada nos meios organizados do operariado pelo advento da República em 1889, recebida como marco inaugural de uma nova era de direito políticos e sociais, pode ser comprovada pela passagem do editorial da Voz do Povo, jornal que tinha como subtítulo “órgão operário dos Estados Unidos do Brasil”.

Novos horizontes se abrem ao povo brasileiro, com o estabelecimento da forma republicana de governo no país.
A democracia, que na sua acepção pura [...] é o regime de igualdade dos direitos como dos deveres, veio enfim nivelar todas as classes na partilha dos bens sociais, libertando-as do privilégio de umas sobre as outras.


O proletariado nacional, que até hoje foi apenas uma força anônima servindo de base a todas as ambições, por inconfessáveis que fossem, passou destarte a ser uma força preponderante na sociedade, um elemento de prosperidade de riqueza e de progresso.
Sob a base da ordem, representada pelos poderes que se constituíam, o industrialismo tomará ingente impulso, valorizando a entidade moral e social do operário, que é modestamente o grande fator da civilização e da grandeza do povo.

A expectativa positiva como o novo regime foi seguida de uma igualmente grande desilusão, na medida em que este se mostrou incapaz de atender aos anseios da classe operária. Essa desilusão é um tema que aparece repetidas vezes na imprensa operária nos anos que se seguiram ao 15 de novembro de 1889. Muitos dos futuros socialistas, como o gaúcho Francisco Xavier da Costa (Schmidt, 2002, p 365-367), bem como futuros anarquistas, como os paulistas Benjamin Mota e Edgard Leuenroth (Toledo, 1998, p.102) chegaram a essas concepções à medida que viram a República fechar as portas a toda esperança de transformação efetiva.

Essa desilusão propiciou três tipos de resposta de parte do movimento operário. A primeira foi a da busca de obtenção de direitos sociais, sem questionamento do sistema político, sustentada pelo positivismo, cooperativistas e toda uma série de manifestações do sindicalismo reformista. Como deixa claro o ofício circular de outubro de 1909 do Círculo dos Operários da União, com sede no Rio de Janeiro, que proclamava entre seus objetivos: “Pugnar dentro da mais absoluta ordem e do respeito à lei, perante os poderes constituídos do país, pelos direitos e interesses legítimos da classe, outorgados pela libérrima Constituição de 24 de fevereiro de 1891, tão descuidados até hoje...”

A segunda resposta foi aquela que propunha a conquista de direitos sociais aliada a direitos políticos, visando à mudança do sistema pela participação no processo político-eleitoral, posição dos socialistas e dos setores mais politizados do sindicalismo reformista.

O programa do Partido Operário Brasileiro de 1893 justifica seu lançamento com base no argumento de que “a emancipação econômica da classe trabalhadora é inseparável da sua emancipação política”. E propunha em seu programa a eleição direta para todos os cargos eletivos pelo sufrágio universal e a possibilidade de revogação dos mandatos, assim como a extensão do direito de voto a todos os indivíduos que atingissem o “estado civil” (21 anos). Cinco anos mais tarde, o socialista Vicente de Souza escreveria:

O socialismo, no Brasil, perante a forma republicana, já agora iludida e falseada em todas as relações que serviram de base à propaganda e às promessas, recolhe em seu seio a grande multidão dos que esperam ainda a verdade do republicanismo radical.
Não há, não pode haver antagonismo entre as duas denominações pois que socialismo, em sua inteira e exata acepção, é a forma social e política que realiza todas as promessas, todas as aspirações e todas as soluções do problema republicano.

Na concepção de Vicente de Souza fica evidente que apenas o socialismo seria capaz de levar a cabo as promessas da República, Torna-se comum aos socialistas brasileiros, a partir da década de 1890, a transposição para a República do mesmo raciocínio já empregado pelo movimento socialista com respeito à Revolução Francesa, o de que uma e outra seriam processos iniciados, porém deixados incompletos, cabendo, portanto, aos socialistas levá-los adiante.

Finalmente, a posição de negação da política institucional, depositando na ação direta a forma de pressão necessária para a obtenção de conquistas defendidas por sindicalistas revolucionários e anarquistas. Apesar das implicações não inteiramente iguais em um caso e no outro da noção de ação direta, para ambos a ação direta passava pela rejeição de intermediários, de mediadores, fossem esses mediadores os partidos políticos, indivíduos ou representantes do governo.
No Congresso Operário Brasileiro, realizado em abril de 1906 na capital da República, em cujas resoluções prevaleceu uma orientação sindicalista revolucionária, a resolução que respondia ao tema 1, em que era perguntado se as sociedades operárias deveriam aderir a uma “política de partido” ou conservar a neutralidade, dizia:

Considerando que o operariado se acha extremamente dividido pelas suas opiniões políticas e religiosas; que a única base sólida de acordo e de ação são os interesses econômicos comuns a toda a classe operária, os de mais clara e pronta compreensão; que todos os trabalhadores, ensinados pela experiência e desiludidos da salvação vinda de fora da sua vontade e ação, reconhecem a necessidade iniludível da ação econômica direta de pressão e resistência, sem a qual, ainda para mais legalitários, não há lei que valha; O Congresso Operário aconselha o proletariado a organizar-se em sociedades resistência econômica, agrupamento essencial, sem abandonar a defesa pela ação direta dos rudimentares direitos políticos de que necessitam as organizações econômicas, a pôr fora do sindicato a luta política especial de um partido e as rivalidades que resultariam da adoção, pela associação de resistência, de uma doutrina política ou religiosa, ou de um programa eleitoral. (Pinheiro e Hall, 1979, p.46-47)

Resoluções dentro do mesmo espírito foram aprovadas nos congressos operários brasileiros de 1913 e 1920, e inclusive, a maioria dos anarquistas que atuavam no movimento sindical passa a defender essa postura, encarando a opção pelo ideário anarquista como uma escolha individual fora do sindicato. Ainda em 1906, o jornal anarquista como uma escolha individual fora do sindicato. Ainda em 1906, o jornal anarquista gaúcho A Luta reforça essa postura dentro dos sindicatos.

Como temos procurado explicar, sempre que tratamos de sindicalismo, das associações operárias desse gênero, devem ser excluídas todas as idéias políticas, religiosas ou filosóficas, e apenas prevalecer a de uma conquista econômica pela ação direta dos indivíduos solidários e conscientes.

A Luta por Direitos Sociais

Como resposta à exclusão social e política que não terminou com o advento da República, parte substancial dos setores organizados da classe operária priorizou a luta por direitos sociais. Mas as razões que conduzem a eleger os direitos sociais, muitas vezes em separado e em prejuízo da luta por direitos políticos, variam consideravelmente de corrente para corrente do movimento operário. Destacam-se, entre as correntes que por razões opostas voltam-se para a luta por direitos sociais, tanto as circunscritas e limitadas manifestações de positivismo no meio operário como a face mais visível do sindicalismo na Primeira República, que foi a corrente sindicalista revolucionária.

A concepção comtiana da incorporação do operariado à sociedade moderna, largamente divulgada pelos positivistas brasileiros, remete a direitos sociais, e não a direitos políticos (Carvalho, 1987, p.54) Há, entretanto, toda uma série de projetos de origens diversas, como a doutrina social da Igreja e o corporativismo, que, sem uma relação direta com o positivismo preservam essa mesma concepção.

A posição positivista no meio operário foi representada especialmente pelo já mencionado Círculo dos Operários da União – Culto do Trabalho, organização que atuou, sobretudo, na então capital da República com ramificações pelos estados vizinhos entre 1909 e a década de 1920. Um dos melhores exemplos das posições adotadas por essa organização é a carta endereçada aos organizadores do IV Congresso Operário Brasileiro que publicou no diário carioca A Época em 24 de Outubro de 1912. O Círculo através de seu vice-presidente Abílio de Santana agradeceu, porém recusou o convite para participar do congresso alegando dever aguardar o trâmite dos projetos “sujeitos às sábias, doutas e criteriosas deliberações do Poder Legislativo”, bem como “esperar as resoluções do Exmo. Sr. Presidente da República, pelos esclarecidos órgãos do seu governo” com respeito às solicitações que o Círculo encaminhara pelas reformas do “atual regime do trabalho”. O texto do Círculo também mostra “plena convicção de que a másculação do governo, ou antes, a elevação de vistas dos poderes públicos” se eficaz perante os patrões, pois uma legislação para os operários da União teria reflexos sobre os trabalhadores do setor privado (Confederação Brasileira do Trabalho, 1913. P178-179). Dentro dessa perspectiva, qualquer forma de mobilização ou pressão era vista como prejudicial à obtenção de direitos pleiteados. Os integrantes do Círculo eram movidos pela crença de que os parlamentares e o governo não poderiam deixar de tomar uma atitude diante da justeza das reivindicações apresentadas. Prevalece, portanto nessa organização uma perspectiva que descarta a luta política e o conflito. Nesse sentido, o Círculo representa um tipo bastante peculiar de organizações de trabalhadores, agindo muito mais como um grupo de pressão moral do como um sindicato. Já na circular do Círculo, anteriormente citada, enviada às autoridades em outubro de 1909, na qual anuncia estar em funcionamento e solicita apoio “moral e cívico”, inclui entre seus fins:


Cooperar e colaborar com o Governo nas medidas que tenham por fixo melhorar as condições de vida das classes trabalhadoras, de que somos parte, promovendo assim a confraternização das classes produtoras em geral, e feliz consórcio entre o Capital e o Trabalho pelas formas enunciadas no regime da arbitragem, de modo que cesse de vez, na espécie humana, a luta de castas que entorpece o surto da unidade de vistas altruísticas [...].

Nesse caso, não creio que conceitos como os de “estadania” (Carvalho, 1987, p. 54-55), que foi forjado para designar a posição de correntes operárias que se deixavam cooptar pelo Estado, contribuíam para a compreensão dessas posições. A separação entre direitos sociais e direitos políticos que norteia a concepção do Círculo não é um traço exclusivo da cultura ibérica nem tampouco das características específicas da cidade do Rio de Janeiro, que servem de fundamento para o conceito (Carvalho, 1987, p. 149-152), pois não faltam exemplos semelhantes em outros contextos. Operar com modelos ideais de cidadania não permite ver que o que ele, Círculo, julga existir. Não há capitulação diante do Estado, mas negociação com este no terreno moral escolhido pelos partidários do Culto do Trabalho. O fato desse projeto não ter obtido sucesso não deve servir de pretexto para sua desqualificação pela posteridade.

Partindo de uma perspectiva completamente diversa, mas guardando em comum com as posições anteriormente descritas a separação entre direitos políticos e direitos sociais, situava-se a corrente de maior visibilidade do sindicalismo brasileiro: o sindicalismo revolucionário. Essa corrente que freqüentemente foi designada por diversos autores como “anarco-sindicalistas”, não foi uma mera ramificação do anarquismo, mas uma corrente autônoma, fundamentada em uma doutrina própria, que conservava tanto elementos do anarquismo, como a ação direta e o federalismo, como do marxismo, a exemplo da luta de classes (Toledo, 2002, p.78) Entretanto, a confusão com o anarquismo em parte se justifica na medida em que vários dos dirigentes do movimento operário eram anarquistas que defendiam, como vimos, a adoção de um programa sindicalista revolucionário pelas organizações de cunho sindical. Essa corrente, que dominou os três congressos operários brasileiros realizados durante a Primeira República, recusava a luta política não por conformismo com a ordem vigente, mas por não ver nas práticas eleitorais e parlamentares a possibilidade de transformar a sociedade. É através da luta econômico-sindical em torno das condições e da remuneração do trabalho, e adotando por método a ação direta, particularmente expressa em movimentos grevistas, que o sindicalismo revolucionário pretendia alcançar a emancipação dos trabalhadores.

Em 1904, Elísio de Carvalho escreveu no jornal anarquista O Amigo do Povo:

A ação direta, como meio revolucionário e de emancipação econômica, é a tática mais consentânea com os princípios positivos do anarquismo insurrecional.
Esta nova forma de ação revolucionária e libertadora é o método de luta mais eficaz que possui o proletariado contra os seus opressores e os seus exploradores [...]
A ação direta, consciente e ativa, manifestada em todos os terrenos, traz ainda consigo a bancarrota do reformismo e a desmoralização do parlamentarismo, elimina essa corja de charlatães (sic) que vivem da miséria do operariado ignorante, é a morte de todos os partidos políticos que têm por campo de luta o parlamento, e como arma de combate o sufrágio universal, as duas grosseiras ilusões que ainda alimentam o cérebro domesticado dos ineptos.

Ao contrário de outras correntes que buscavam a garantia de direitos sociais através da legislação, o sindicalismo revolucionário acreditava unicamente na capacidade de mobilização dos trabalhadores para garantir que os patrões mantivessem as conquistas obtidas em greves.

A Cidadania Operária

O termo cidadania foi de tal modo vulgarizado que pode ser utilizado nas mais diversas situações. Sindicatos, empresas, governos empregam o termo conferindo-lhe os mais diversos significados, o que tem conduzido muitos a encará-lo com crescente ceticismo e até contrapô-lo a uma perspectiva classista (Welmowicki, 1998)

As correntes políticas do movimento operário na Primeira República, os socialistas em particular, propunham em seus programas não apenas direitos sociais, mas também a ampliação dos direitos políticos, por exemplo, através da extensão do direito de voto. Nesse sentido, podemos dizer que lutavam pela cidadania, ainda que o termo não fosse usual no vocabulário da época. Portanto, seu uso requer cuidado e, sobretudo, deve vir acompanhado de uma explicação sobre seu significado dentro de cada contexto.

A resposta encontrada pelas classes trabalhadoras durante a Primeira República a um sistema que levava a sua exclusão social e política está em parte no mundo associativo criado. O associativismo nesse período das classes trabalhadoras em geral, e da classe operária em particular, se expressa através de uma rede extremamente diversificada e rica de associações. Sociedades recreativas, carnavalescas, dançantes, esportivas, conviviam lado a lado com sociedade mutualistas, culturais e educativas e, também, com sociedades profissionais, classistas e políticas. Em que medida toda e qualquer sociedade composta por trabalhadores, independentemente de seus objetivos, expressa identidade de classe ainda é objeto de controvérsia. Há aqueles que associam a identidade operária a formas de ação coletivas e associações que reivindiquem seu caráter de classe (Batalha, 1991-1992), ao passo que outros vêem em toda sociedade composta por trabalhadores, inclusive clubes de futebol, uma forma de identidade classista (Pereira, 2000, p.255-280).

Todavia, se o mundo associativo possibilitava um espaço de participação política, que em grande medida não dependia das normas legais que regiam a política formal, constituindo uma espécie de contra-sociedade, governada por outros valores, a capacidade e mesmo a vontade por parte dessas sociedades de buscar espaços na política formal eram relativamente limitadas. Coube às organizações de cunho eminentemente político, os partidos operários, desempenham esse papel.

Desde a última década do século XIX, a maioria dos programas políticos de organizações que, sob a denominação de partidos operários ou socialistas, tinham como objetivo a defesa dos interesses da classe trabalhadora passava pela ampliação dos direitos políticos, em particular propondo reformas do sistema eleitoral. No sistema vigente votavam apenas os homens, brasileiros, maiores de 21 anos, alfabetizados e alistados como eleitores. Todo o processo eleitoral era controlado pelo partido situacionista, propiciando fraudes, e não havia voto secreto, deixando os eleitores à mercê de todo tipo de pressão. Assim, durante a Primeira República, as eleições de candidatos operários foram fenômenos raros, limitados a uns poucos casos: como o do tipógrafo João Ezequiel, eleito deputado estadual, em 1913, em Pernambuco, graças a sua inclusão na lista oficial do governador General Dantas Barreto; e, em 1928, a eleição dos comunistas Minervino de Oliveira e Octávio Brandão para o Conselho Municipal do Distrito Federal pelo Bloco Operário e Camponês. As características do funcionamento dos legislativos, com garantia de ampla maioria para o situacionismo, tornavam as eleições de eventuais candidatos operários muito mais um feito propagandístico do que uma possibilidade para mudanças significativas no sistema político.

Aliás, será precisamente a oportunidade para a propaganda política que as eleições propiciavam que o Partido Comunista – Seção Brasileira da Internacional Comunista usava, nos anos 20, como justificativa para participar do processo.

Em artigo em fevereiro de 1928, publicado no jornal A Esquerda, assinado por P. Lavinsky (que deve ser um pseudônimo), essa posição é explicitada:

[...] só nos devem encher de satisfação as novas diretivas que vem adotando o movimento proletário entre nós, arregimentando suas forças para futuras batalhas eleitorais, que inaugurarão uma fase na política, fazendo com que o proletariado entre em cena, independentemente dos chorrilhos políticos da burguesia, manifestando sua vontade firme de afirmar-se numa classe forte e politicamente capaz de escolher seus mais dedicados membros para as investiduras legislativas.
Será um dos muitos meios de alargar sua luta geral contra os exploradores, criando uma nova frente de combate e preparando com ela novas bases para um mais largo movimento de massas capaz de derrubar definitivamente os seus exploradores e levá-los à definitiva vitória contra os seus inimigos seculares.

O artigo termina conclamando os operários ao alistamento eleitoral.

A posição comunista na questão eleitoral acaba sendo um meio-termo entre aquela dos socialistas e das demais correntes reformistas que advogam a participação eleitoral, e aquela de rejeição dos procedimentos e instituições político-parlamentares, que marcam as atuações de anarquistas e sindicalistas revolucionários. Como os primeiros, os comunistas defendem a participação no processo eleitoral, não compartilhando, porém, de esperança de que a via político-parlamentar possibilite mudanças. Assim, como os últimos, é na revolução, e não na via parlamentar, que concebem a única possibilidade de ruptura, entretanto, não deixam de ver a luta eleitoral como mais um espaço de exercício da luta política.

Voltando ao tema da exclusão política da classe operária e das respostas a essa situação, o “Programa mínimo” do Partido Socialista Brasileiro, que consta do seu “Manifesto”, de 1902, propunha, entre outras medidas, os seguintes pontos:

3- Trabalho permanente de qualificação eleitoral, e demais reformas que facilitem a ação eleitoral [...] 8- Reconhecimento do direito de cidadãos a todos os estrangeiros que tenham um ano de residência no país [...] 10- Revogabilidade dos representantes eleitos no caso de não cumprirem o mandato popular (...) 19- Referendum político e econômico, por voto direto, de iniciativa popular [...] 22- Igualdade política e jurídica para os dois sexos. 23- Voto político para todos os cidadãos, como também para as mulheres, desde a idade de 18 anos.

Afora a aparente falta de lógica na ordem desses objetivos políticos, que se mesclam com outros objetivos políticos e econômicos no “programa mínimo”, chama a atenção o fato de que, passados 100 anos, alguns pontos citados continuam a fazer parte do programa da esquerda, como o referendum popular. Outros, como a revogabilidade dos mandatos, estão ainda longe de figurarem um horizonte próximo.

Nesse “Manifesto” do PSB, partido em grande medida composto por trabalhadores, aparece uma concepção de cidadania que não apenas garante melhores condições de trabalho, protegendo o trabalhador através de mecanismos legais, propondo a promoção de uma maior justiça social, sobretudo através de medidas fiscais, como vincula de forma indissociável direitos sociais a direitos políticos, sustentando que a obtenção de uns depende dos outros.

Se sob o olhar de hoje o diagnóstico da situação e as propostas contidas no Manifesto do PSB parecem justas, a pergunta inevitável é: por que não houve um partido socialista operário de peso no Brasil?

Para não falarmos de exemplos mais distantes da realidade brasileira, tanto o Chile como a Argentina, constituíram a partir de certo momento partidos socialistas unificados (a despeito de divisões esporádicas) de maior ou menor peso e estabilidade, ao passo que no Brasil da Primeira República o que houve foi uma sucessão de agremiações políticas operárias de curta duração, freqüentemente concorrentes, e de implantação puramente local, ou quando muito estadual. É verdade que o caso do Chile, tem algumas características que dificultam a comparação, como uma classe operária em que a imigração teve pouco peso, portanto mais homogênea, em um sistema político que, a despeito de fraudes e manipulações, contava com o sufrágio masculino e o voto secreto desde á década de 1880 (DeShazo, 1983. P. 43-117-119). No caso argentino, porém, a imigração teve um papel ainda mais significativo que no Brasil, tendo sido o principal destino na América Latina para a emigração européia. Assim como a cidade de São Paulo das primeiras décadas do século XX (que estava longe de constituir a regra no caso brasileiro), a maioria da população economicamente ativa de Buenos Aires, entre 1885 e 1914, era composta por estrangeiros (Coggiola e Bilsky, 1999, p.15-27, n.7) No que tange ao sistema político, a lei eleitoral de 1912, sob a presidência de Saénz Peña, tornou o voto universal e obrigatório para os homens argentinos maiores de 18 anos, o que a curto prazo não inclui o operariado majoritariamente estrangeiro, mas que até o fim dos anos 20 garantiu um aumento da base eleitoral e uma crescente participação operária na vida política (Coggiola e Bilsky, 1999, p.55)

Por um lado, o sistema político brasileiro não passou por nenhuma reforma ao longo da Primeira República que ampliasse a participação política, mantendo-se mais excludente que seus congêneres, argentino e chileno; por outro lado, não ocorreu nenhuma campanha sistemática por parte da liderança operária no Brasil no sentido do alistamento eleitoral ou na naturalização do operariado de origem estrangeira. Apelos visando a participação no processo eleitoral, como o do Manifesto de 1902 ou do artigo de 1928 já mencionado, assinado sob o nome de Lavinsky, são exemplos de manifestações que ocorreram de forma esporádica, geralmente próximas à realização de pleitos, cujo resultado prático foi limitado.

No Brasil e na Argentina, particularmente antes da reforma de 1912 (Falcón, 1984. P 102), a opção pela naturalização não atraía o imigrante, tanto pelas características do sistema político, como pela perda de certa proteção que teriam na condição de cidadãos de países europeus. Além disso, é preciso levar em conta que o imigrante que tivesse como projeto o retorno à terra pátria dificilmente abriria mão de sua cidadania. O pouco interesse pela naturalização pode ser medido por diversos dados. Segundo estimativas de um funcionário italiano em 1906, 90% de seus conterrâneos no Brasil reuniam as condições necessárias para solicitar a cidadania brasileira, mas as naturalizações eram raras (Hall, 1975, p.405). Essa situação não pareceu mudar substancialmente com o passar do tempo, pois, de acordo com o censo de 1920, somente cerca de 1,5% dos estrangeiros nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo optaram pela cidadania brasileira (Maram, 1979, p.33)

Há ainda que acrescentar que as organizações de caráter político constituídas por imigrantes no Brasil, que poderiam exercer um papel de incentivo a naturalização, freqüentemente estavam mais voltadas para a política nos seus países de origem do que preocupadas em intervir na política brasileira. O caso do grupo socialista italiano que publicava o jornal Avanti!, em São Paulo, é paradigmático. Depois de buscar aproximações com os socialistas brasileiros e tentar influir no movimento nos seus primeiros anos de atividade, o jornal, fundado em 1900, com o passar do tempo, volta-se cada vez mais para a pátria de origem.

De qualquer modo, como esperar que os estrangeiros se naturalizassem a fim de poder participar do processo eleitoral ou buscassem interferir na política, se os próprios brasileiros que podiam ser eleitores mostravam pouco ou nenhum interesse no voto?

Mariano Garcia, em 1913, ao tentar explicar esse desinteresse do proletariado pela eleições, atribui parte do problema à “ação dos pretensos libertários”, acrescentando, porém, em seguida:

[...] devemos dizer, em nome da justiça e da verdade, que mais tem concorrido para o afastamento do operariado pelos seus direitos políticos [sic], a falta de seriedade de todos os politicantes que se tem guindado aos cargos de eleição popular, que faltos de idéia e de valor e mérito para conquistar essa posições, tem procurado transformar o sistema eleitoral em uma coisa desprezível em que não se respeita o voto, onde só se elege, com as atas falsas, os indivíduos indigitados pelos mandões dominantes, por sua vez também elevados pelos mesmos processos fraudulentos, indignos de quem se presa.

A clara percepção de que o sistema eleitoral era fraudulento tendia a afastara maioria dos eleitores potenciais, restando como participantes do processo aqueles que auferiam benefícios através de relações clientelistas com os chefes políticos, aqueles que de algum modo eram coagidos a participar e, finalmente, os poucos que acreditavam poder mudar a situação através da participação.

Outro aspecto a ser levado em conta era a maneira como as classes dominantes e os governantes brasileiros estavam acostumados a lidar com as classes subalternas: a repressão. Prisões arbitrárias, fechamento de associações, deportação dos estrangeiros, desterro para a Amazônia dos nacionais – ainda que a verificação da nacionalidade exata dos atingidos por esses dois tipos de medidas fosse falha – são parte do arsenal de medidas repressivas tomadas pelos poderes constituídos contra o movimento operário. Essa medidas tornaram-se mais sistemáticas depois das greves de 1917 e 1919, e atingiram seu ápice sob o governo de Artur Bernardes (1922-1926). Entretanto, a despeito da violência da repressão sobre o operariado no Brasil, esta mantinha-se menos mortal e ao mesmo tempo mais eficaz que sua congêneres na Argentina, particularmente no Chile, onde chegaram a ser perpetrados massacres de trabalhadores (Deshazo, 1983, p. XXIX; Hall e Pinheiro, 1983, p.5)

Todos esses fatores podem ajudar a entender as dificuldades e os obstáculos enfrentados para a constituição de um partido político socialista, tendo por base a classe operária, no Brasil da Primeira República. Todavia, nem isoladamente, nem em conjunto, esses fatores de fato explicam o fracasso desse projeto, pois basta olhar para o caso argentino para encontrar um exemplo mais bem-sucedido de criação de um partido socialista.

O único traço peculiar ao caso brasileiro, que não encontra paralelo em países próximos, foi o caráter geograficamente desconcentrado do movimento operário, com vários pólos distribuídos nas principais cidades brasileiras (sobretudo as capitais) e em algumas poucas cidades do interior de alguns estados. Ao longo da Primeira República, o movimento operário não conseguiu jamais uma efetiva coordenação nacional. As confederações, que em tese exerciam esse papel, tiveram uma existência mais nominal do que real, como a Confederação Operária Brasileira, de orientação sindicalista revolucionária, que nos períodos em que funcionou, 1908-1909 e 1913-1915, foi muito mais uma extensão da Federação Operária do Rio de Janeiro, limitada à área de atuação daquela federação.

Com os partidos operários a situação não foi diferente. Esses partidos, invariavelmente, atuaram apenas na escala municipal ou, em alguns casos, estadual, sem uma dimensão nacional. A única exceção a essa regra é constituída pelo Partido Comunista, mas mesmo, este começo majoritariamente composto por quadros da capital federal. Portanto, o projeto de cidadania operária, que marca os muitos programas dos partidos operários da Primeira República, esbarrou na falta de organizações adequadas – partidos consolidados – para levá-lo adiante.

A história da classe operária no Brasil, percorreu um longo caminho até a eleição de um dos seus membros à Presidência da República em 2002. Essa eleição por si não garante que uma concepção operária da cidadania passe a vigorar, mas nos deixa sem dúvida mais próximos daquilo que almejava o Manifesto de 1902.

Bibliografia:

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------- Imigração e movimento operário no Brasil. Uma interpretação. 1990. São Paulo