Cinema e
História
Marc Ferro
Coordenadas para uma
pesquisa
Entre cinema e história, as
interferências são múltiplas, por exemplo: na confluência entre a História que
se faz e a História compreendida como relação de nosso tempo, como explicação
do devir das sociedades. Em todos esses pontos o cinema intervém.
Inicialmente
como agente da história. Cronologicamente ele apareceu de início como
instrumento do progresso científico: os trabalhos de Eadweard Muybridge, de
Marey foram apresentados à Academia das Ciências. Hoje o cinema conserva essa
função primeira, que foi estendida à medicina. A instituição militar também o
utilizou desde o início, como, por exemplo, para identificar as armas do
inimigo.
Paralelamente,
desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na
história com filmes, documentários ou de ficção, que, desde sua origem, sob a
aparência de representação, doutrinam ou glorificam. Na Inglaterra, mostram
essencialmente a rainha, seu império, sua frota; na França, preferiram filmar
as criações da burguesia ascedente: um trem, uma exposição, as instituições
republicanas. Também na ficção o filme de propaganda aparece desde a origem: a
favor ou contra Dreyfus, estigmatizando os boxers*1, etc.
*1Nome dado pelos ingleses aos
membros de uma sociedade secreta chinesa que, em 1900, puseram em perigo as
legações européias (N.T.)
Simultaneamente, desde que os dirigentes de uma sociedade
compreenderam a função que o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se
dele pô-lo a seu serviço: em relação a isso, as diferanças se situam ao nível
da tomada de consciência, e não ao nível das ideologias, pois tanto no Ocidente
como no Leste os dirigentes tiveram a mesma atitude. Painel confuso. As
autoridades, sejam as representativas do Capital, dos Sovietes ou da
Burocracia, desejam tornar submisso o cinema. Este, entretanto, pretende
permancer autonômo, agindo como contra poder, um pouco à maneira da impressa
americana ou canadense, e também como os escritores de todos os tempos procederam.
Sem dúvida, esses cienastas, conscientemente ou não, estão cada a serviço de
uma causa, de uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertamente as
questões. Entretanto, isso não exclui o fato de que haja entre eles resistência
e duros combates em defesa de suas próprias idéias. À sua maneira, o Jean Vigo de Zéro de Conduite, o René
Clair de nós a liberdade, e Louis Malle de Lacombe Lucien, ou ainda o Alain
Resnais de Stavisky*2, sem falar em quase todos os filmes de Godard,
manifestam uma independência diante das correntes ideológicas dominantes,
criando e propondo uma visão de mundo inédita, própria de cada um deles, o que
vigorasamente suscita uma nova tomada de consciência, de tal forma que as
instituições ideológicas instauradas (partidos políticos, Igrejas, etc..)
entram em disputa e rejeitam tais obras, como se apenas essas instituições
tivessem o direito de se expressar em nome de Deus, da nação ou do
proletariado, e como se apenas elas dispusessem de outra legitimidade além
daquela que elas próprias se outorgaram.
*2Sobre os títulos de filmes: sempre que possível, usou-se o título
com que foram lançados no Brasil. Na ausência deste, foi mantido o título
original, acompanhado eventualmente de tradução literal. (N.T.)
Essa capacidade do cinema não deixa de surpreender até
mesmo as Igrejas mais bem instaladas em suas certezas dogmáticas que estão, de
resto, frequentemente fundamentadas num saber subvertido: assim é que se
explica, por exemplo, a aventura extraordinária de um número de cineastas soviéticos
que puderam produzir filmes cuja significação e cuja fabricação escaparam ao apparatchiks burocráticos – compostos por iletrados de
cultura visual – que julgaram a ideologia d aobra por seus diálogos, seu
roteiro, ou seja, por seus componentes escritos.
Hoje se vê uma nova etapa com a multiplicação das câmeras
super 8: o cinema pode torna-se ainda mas ativo como agente de uma tomada de
consciência social, com a condição de que a sociedade não seja somente um
objeto de análise a mais, objeto que pode ser filmado brincando de bom selvagem
para o benefício de um novo colonizador, o militante-cameraman. Outrora
“objeto” para uma “vanguarda”, a sociedade pode de agora em diante
encarregar-se de si mesma. Esse poderia ser o sentido de uma passagem dos
filmes para os filmes militantes.
Medir ou avaliar a ação exercida pelo cinema é difícil.
Certos efeitos, pelo menos, são distinguíveis. Por exemplo, sabe-se que O judeu Suss alcançou enorme sucesso na
Alemanha, independentemente das ordens dadas por Goebbels; sabe-se também que
logo após sua projeção, em Marselha, os judeus foram molestados. Outro exemplo:
é possível observar que nos Estados Unidos os filmes antinazistas e os de
exaltação da solidariedade patriótica só tiveram sucesso mediante duas condições
– não glorificar a Resistência nos países ocupados nem a luta contra as
instituições legais na Alemanha; não questionar a livre iniciativa de cada
empresa sob o pretexto de coordenar melhor a produção de acordo com o apelo de
Roosevelt.
Correlações e indicações desse tipo são raras. Um episódio
recente, entretanto, testemunha a eficácia do fato cinematográfico: a
apresentação, na ex-ORTF (Office de Radiodiffusion-Télévision Française), em
1975, de um filme letão sobre os campos de concentração na União Soviética, o
que suscitou uma intervenção imediata do Partido Comunista Francês, medida que
ele até então evitara.
Essa intervenção do cinema se exerce por meio de um certo
número de modos de ação que
tornam eficaz, operatório. Sem dúvida essa capacidade está ligada, como se verá
depois, à sociedade que produz o filme e àquela que o recebe, que o recepciona.
Persite o fato de que além do ajustamento de dificuldades não cinematográficas
(condições de produção, formas de comercilização, seleção de gêneros,
referência a significados culturais, etc.) o cinema dispõe de certos número de
modos de expressão que não são uma simples transcrição da escrita literária,
mas que têm, sim, sua especificidade: os teóricos da escrita cinematográfica a
estudam, de Jean Mitry a Bruce Morissete e Christian Metz.
Entretanto seria ilusório imaginar que a prática dessa
linguagem cinematográfica é, ainda que inconcientemente, inocente. É fácil
imaginar que um teórico do cinema, como Godard, por exemplo, seja mais mestre
de sua escrita que um outro, e também de seu “estilo”: o longo travelling de Week-End restitui o tempo real por meio de diferentes
temporalidades que são postas em cenas no filme para criar um “efeito”, para
tornar insuportável a situação imaginada pelo autor. Da mesma forma, um
procedimento aparentemente utilizado para exprimir duração, ou ainda uma outra
figura (de estilo) transcrevendo um deslocamento no espaço, etc., pode, sem
intenção do cineasta, revelar zonas ideológicas e sociais das quais ele não
tinha necessariamente consciência, ou que ele acreditava ter rejeitado. É o
caso, por exemplo, das “fusões encadeadas” de O judeu Suss, analisadas mais
adiante. Da mesma forma, podem ser estudados os efeitos de montagem, como já
fizeram Kulechov, Eisentein, etc., o funcionamento dos diferentes elementos da
película sonorizada, e assim por diante. Chris
Marker já abriu um via nesse sentido com Lettre de Sibérie; outros a sistematizam hoje analizando as n
combinatórias no interior do filme.
3. É preciso dizer que a utilização e a prática de modos de
escrita específica são, assim, armas de combate ligadas á sociedade que produz
o filme, à sociedade que o recebe. Essa sociedade se trai inicialmente pela
censura em todas as suas formas, compreendendo-se ai também a autosencura. O
epílogo de O último homem, de Murnau,
por exemplo, pode bem ser incluido nesse contexto: o produtor não queria
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