domingo, 25 de julho de 2010

A Era dos Impérios Uma Economia Mudando de Marcha de Eric Hobsbawn

A Era dos Impérios

Uma Economia Mudando de Marcha


Eric Hobsbawn da página 78 até a página 85


O significado coletivo dessa acumulação de fregueses, mesmo pobres, agora era reconhecido pelos homens de negócios. Os filósofos políticos temiam a emergência das massas, ao passo que os vendedores a saudavam. A indústria publicitária, que se desenvolveu agora como força importante pela primeira vez dirigiu-se a elas. As vendas a prazo, em grande medida uma inovação desse período, visavam a permitir que as pessoas, com pequenas rendas fizessem grandes compras. E a arte e a indústria revolucionárias do cinema (ver cap.9) começaram do nada em 1895 para exibir uma riqueza além dos sonhos mais ambiciosos, em 1915, com produtos tão caros que faziam óperas e príncipes parecerem mendigos, tudo isso baseado na força de um público que pagava em centavos.


Há uma cifra que, sozinha, pode ilustrar a importância da região "desenvolvida" do mundo na época. Apesar do crescimento notável das novas regiões e economias ultramarinas, apesar da sangria causada por uma vasta emigração em massa, a parcela de europeus na população mundial cresceu no decorrer do século XIX, e sua taxa de crescimento passou de 7% ao ano na primeira metade e 8% na segunda a quase 13% em 1900-1913. Se a este continente urbanizado de consumidores potenciais, acrescentarmos os EUA e algumas economias ultramarinas em processo de desenvolvimento rápido, porém muito menores, teremos uma mundo "desenvolvido" de algo em torno de 15% da superfície do planeta, com ao redor de 40% de seus habitantes.


Esses países constituíam o grosso da economia mundial, juntos representavam 80% do mercado internacional. E mais, eles determinavam o desenvolvimento do resto do mundo, cujas economias cresciam ao prover às necessidades estrangeiras. Não se pode saber o que teria acontecido ao Uruguai ou a Honduras se lhes tivesse cabido a iniciativa. (De qualquer maneira, não provável que isso ocorresse: o Paraguai, já tentara uma vez escapar ao mercado mundial, e fora massacrado e forçado a voltar a ele – cf. A Era do Capital, cap.4) O que nós sabemos é que o primeiro produzia carne porque havia um mercado para ele na Grã-Bretanha e, o outro, bananas porque alguns comerciantes de Boston calcularam que os americanos pagariam para comê-las. Algumas economias satélites se saíram melhor que outras, mas quanto melhor se saíssem, maior o proveito das economias do núcleo central, para quem esse crescimento se traduzia em mercados maiores e crescentes para a exportação de bens e capital. A marinha mercante mundial, cujo crescimento indica grosso modo a expansão da economia global, permaneceu mais ou menos estável entre 1860 e 1890. Seu volume flutuou entre 16 e 20 milhões de toneladas. Entre 1890 e 1914, quase duplicou.


Então, como podemos sintetizar a economia mundial da Era dos Impérios?


Em primeiro lugar, como vimos, foi uma economia cuja base geográfica era muito mais ampla do que antes. Sua parceria industrializada e em processo de industrialização aumentara: Na Europa, devido à revolução industrial na Rússia e em países como a Suécia e a Holanda, até então pouco atingidos por ela, e, fora da Europa, por causa do desenvolvimento da América do Norte e, já até certo ponto do Japão. O mercado internacional dos produtos primários cresceu enormemente – entre 1880 e 1913 o comércio internacional dessas mercadorias quase triplicou – bem como, por conseguinte, tanta as áreas destinadas a sua produção como sua integração ao mercado mundial. O Canadá se integrou ao grupo dos maiores produtores mundiais de trigo após 1900, com uma safra que passou da média anual de 18 milhões de hectolitros nos anos de 1890 a 70 milhões em 1910-1913. Ao mesmo tempo, a Argentina se tornava um exportador importante de trigo – e todos os anos os lavradores italianos apelidados de "andorinhas" (golondrinas), atravessavam 16 mil quilômetros de Oceano Atlântico, indo e voltando para fazer sua colheita. A economia da Era dos Impérios foi aquela em que Baku (no Azerbaijão) e a bacia do Donets (Na Ucrânia) foram integradas à geografia industrial, ao passo que a Europa exportava tanto bens como moças a cidades novas como Johanesburgo e Buenos Aires, e aquela em que teatros foram erguidos sobre os ossos de índios mortos em cidades nascidas do boom da borracha a 1600 quilômetros rio acima da foz do Amazonas.


Por conseguinte, como já foi observado, a economia mundial agora era notavelmente mais pluralista que antes. A economia britânica deixou de ser a única totalmente industrializada e, na verdade, a única industrial. Se reunirmos a produção industrial e mineral (incluindo a construção), em 1913 os EUA forneceram 46% deste total, a Alemanha 23,5%, a Grã-Bretanha 19,5% e a França 11%. A Era dos Impérios, como veremos, foi essencialmente caracterizada pela rivalidade entre Estados. Ademais, as relações entre o mundo desenvolvido e o subdesenvolvido também foram mais variadas e complexas que em 1860, quando a metade do total das exportações da Ásia, África e América Latina se dirigiu a um só país, a Grã-Bretanha. Por volta de 1900, a participação britânica caiu a um quarto e as exportações do Terceiro Mundo para outros países da Europa Ocidental já superavam as destinadas à Grã-Bretanha (31%). A Era do Império já não era monocêntrica.


Esse pluralismo crescente da economia mundial, ficou até certo ponto, oculto por sua persistente e, na verdade, crescente dependência dos serviços financeiros, comerciais e da frota mercante da Grã-Bretanha. Por um lado, a City de Londres era, mais que nunca, o centro de operações das transações comerciais internacionais, tanto que o rendimento de seus serviços comerciais e financeiros, sozinho, quase compensava o grande déficit do item mercadorias de sua balança comercial (137 milhões de libras contra 142 milhões, em 1906-1910). Por outro lado, o enorme peso dos investimentos britânicos no exterior e de sua frota mercante reforçou ainda mais a posição central do país, numa economia mundial que girava em torno de Londres e se baseava na libra esterlina. A Grã-Bretanha continuou a ter uma posição dominante no mercado internacional de capitais. Em 1914, a França, a Alemanha, os EUA, a Bélgica, a Holanda, a Suíça e os demais, juntos, somavam 56% dos investimentos ultramarinos mundiais; a Grã-Bretanha, sozinha, detinha 44%. Em 1914, a frota britânica de navios a vapor era, sozinha, 12% maior que a totalidade das frotas mercantes de todos os outros países europeus reunidos.


Na verdade, a posição central da Grã-Bretanha por ora estava reforçada pelo próprio desenvolvimento do pluralismo mundial. Pois, como as economias em processo de industrialização recente compravam mais produtos primários do mundo subdesenvolvido, acumulavam em seu conjunto um déficit comercial bastante substancial em relação a este último. A Grã-Bretanha, sozinha, restabelecia um equilíbrio global, pois importava mais bens manufaturados de seus rivais, exportava seus próprios produtos industriais para o mundo dependente, mas principalmente obtinha rendimentos invisíveis de vulto, provenientes tanto de seus serviços comerciais internacionais (bancos, seguros, etc.) como da renda gerada pelos enormes investimentos no exterior do maior credor mundial. Assim, o relativo declínio industrial britânico reforçou sua posição financeira e sua riqueza. Os interesses da indústria britânica e da City até então bastante compatíveis, começaram a entrar em conflito.


A terceira característica da economia mundial é a que mais salta aos olhos: a revolução tecnológica. Como todos nós sabemos, foi nessa época que o telefone e o telégrafo sem fio, o fonógrafo e o cinema, o automóvel e o avião passaram a fazer parte do cenário da vida moderna, sem falar na familiarização das pessoas com a ciência por meio de produtos como o aspirador de pó (1908) e o único medicamento universal jamais inventando a aspirina (1889). Tampouco devemos esquecer a mais benéfica de todas as máquinas do período, cuja contribuição para emancipação humana foi imediatamente reconhecida: a modesta bicicleta. Apesar de tudo, antes de saudarmos essa safra impressionante de inovações como uma "segunda revolução industrial", não devemos esquecer que só retrospectivamente elas são consideradas como tal. Para o século XIX, a principal inovação consistia na atualização da primeira revolução industrial, através do aperfeiçoamento da tecnologia do vapor e do ferro: o aço e as turbinas. As indústrias tecnologicamente revolucionárias, baseadas na eletricidade, na química e no motor de combustão, começaram certamente a ter um papel de destaque, em particular nas novas economias dinâmicas. Afinal de contas, Ford começou a fabricar seu modelo T em 1907. Contudo, considerando apenas a Europa, entre 1880 e 1913 foi construída a mesma quilometragem de ferrovias que na "idade da ferrovia" inicial, entre 1850 e 1880. França, Alemanha, Suíça, Suécia e Holanda aproximadamente duplicaram suas redes ferroviárias nesses anos. O último triunfo da indústria britânica, o virtual monopólio britânico da construção naval definido entre 1870 e 1913, foi conquistado por meio da exploração dos recursos da primeira revolução industrial. Não obstante, a nova revolução industrial reforçou, mais que substituiu, a antiga.


A quarta característica foi, como já vimos, uma dupla transformação da empresa capitalista: em sua estrutura e em seu modus operandi. Por um lado, houve a concentração de capital, o aumento da escala, que levou a distinção entre "empresa" e "grande empresa" (Grossindustrie, Grossbanken, grande industrie...), ao retraimento do mercado de livre concorrência e a todos os demais aspectos que, por volta de 1900, levaram os observadores a buscar em vão rótulos gerais que descrevessem o que parecia ser cabalmente uma nova fase de desenvolvimento econômico (ver próximo capítulo). Por outro lado, houve uma tentativa sistemática de racionalizar a produção e a direção das empresas aplicando "métodos científicos" não só à tecnologia, mas também à organização e aos cálculos.


A quinta característica foi uma transformação excepcional do mercado de bens de consumo: uma mudança tanto quantitativa como qualitativa. Com o aumento da população, da urbanização e da renda real, o mercado de massa, até então mais ou menos restrito à alimentação e ao vestuário, ou seja, às necessidades básicas, começou a dominar as indústrias produtoras de bens de consumo. A longo prazo, isto foi mais importante que o notável crescimento do consumo das classes ricas e favorecidas, cujo perfil de demanda não mudou de maneira acentuada. Foi o Ford modelo T, e não o Rolls-Royce, que revolucionou a indústria automobilística. Ao mesmo tempo, uma tecnologia revolucionária e o imperialismo concorreram para a criação de uma série de produtos e serviços novos para o mercado de massa – dos fogões a gás, que se multiplicaram nas cozinhas da classe operária britânica no decorrer desse período, á bicicleta, ao cinema e à modesta banana, cujo consumo era praticamente desconhecido antes de 1880. Uma de suas conseqüências mais óbvias foi a criação dos meios de comunicação de massa, que só agora merecem esse nome. Um jornal britânico atingiu pela primeira vez uma tiragem de um milhão de exemplares nos anos de 1890, e um francês por volta de 1900.


Tudo isso implicou uma transformação não apenas da produção, pelo que agora veio a ser chamado de "produção em massa", mas também da distribuição, inclusive do crédito ao consumidor (sobretudo através das vendas a prazo). Assim, a venda de chá em pacotes padronizados de ¼ de libra começou na Grã-Bretanha em 1884. Ela faria a fortuna de mais de um magnata de empórios saído das ruelas dos bairros operários das grandes cidades, como Sir Thomas Lipton, cujos iates e dinheiro conquistaram a amizade do rei Eduardo VII, monarca com notória atração por milionários pródigos. O número de filiais da Lipton passou de zero em 1870 a 500 em 1899.


O aspecto acima também se ajustava naturalmente à sexta característica da economia: o crescimento acentuado, tanto absoluto como relativo, do setor terciário da economia, tanto público como privado – trabalho em escritórios, lojas e outros serviços. Tomemos apenas o caso da Grã-Bretanha, um país que, em seu apogeu, dominara a economia mundial com uma quantidade ridiculamente reduzida de trabalho de escritórios: em 1851, havia 67 mil funcionários públicos e 91 mil empregados de comércio, numa população ativa total de cerca de 9,5 milhões de pessoas. Mas por volta de 1911, o comércio empregava quase 900 mil pessoas das quais 17% eram mulheres, e o funcionalismo público triplicara. A porcentagem da população ativa que o comércio empregava quintuplicara desde 1851. Mas adiante abordaremos a conseqüência social dessa proliferação de trabalhadores de colarinhos brancos e mãos limpas ("brancas").


A última característica da economia que destacarei aqui será a crescente convergência de política e economia, quer dizer, o papel cada vez maior do governo e do setor público, ou o que ideólogos da persuasão liberal, como o advogado A.V. Dicey, consideraram como o avanço ameaçador do "coletivismo" às custas da velha, boa e vigorosa iniciativa individual ou voluntária. Na verdade, tratava-se de um dos sintomas do retraimento da economia da livre concorrência, que fora o ideal – e até certo ponto a realidade – do capitalismo de meados do século XIX. De uma forma ou de outra, após 1875, houve um ceticismo crescente quanto a eficácia da economia de mercado autônoma e auto-regulada, a famosa "mão oculta" de Adam Smith, sem alguma ajuda do Estado e da autoridade pública. A mão estava se tornando visível das mais variadas maneiras.


Por um lado, como veremos no capítulo 4, a democratização da política forçou governos muitas vezes relutantes e inquietos a enveredarem pelo caminho de políticas de reforma e bem-estar sociais, bem como de ação política na defesa dos interesses econômicos de certos grupos de eleitores, como o protecionismo e – de certa forma com menos eficácia – medidas contra a concentração econômica, como nos EUA e na Alemanha. Por outro lado, ocorreu a fusão da rivalidade política entre os Estados com a concorrência econômica entre grupos nacionais de empresários, o que contribuiu – como veremos – tanto para o fenômeno do imperialismo como para a gênese da Primeira Guerra Mundial. Levaram também, a propósito, ao crescimento de indústrias em que, como na indústria bélica, o papel do governo era decisivo.


Contudo, embora o papel estratégico do setor público pudesse ser crucial, seu peso real na economia permaneceu modesto. Apesar da proliferação dos exemplos em contrário – como a aquisição pelo governo britânico de uma participação na indústria petrolífera do Oriente Médio e seu controle da nova telegrafia sem fio, ambos significativos do ponto de vista militar; a sua indústria; e, acima de tudo, a política sistemática de industrialização do governo russo a partir dos anos de 1890 – os governos e a opinião pública encaravam o setor público apenas como uma espécie de complemento menor à economia privada, mesmo em se considerando o crescimento acentuado da administração pública (sobretudo municipal) na Europa, na área do serviço direto como na das empresas de utilidade pública. Os socialistas não partilhavam dessa crença na supremacia do setor privado, embora dessem pouca ou nenhuma atenção aos problemas de uma economia socializada. Talvez possam ter considerado essas iniciativas municipais como um "socialismo municipalista", mas a maiorias delas se devia a autoridades sem intenções, nem mesmo simpatias, socialistas. As economias modernas amplamente controladas, organizadas e dominadas pelo Estado foram produto da Primeira Guerra Mundial. Entre 1875 e 1914, a parcela dos crescentes produtos nacionais que os gastos públicos consumiam na maioria dos países líderes tendeu a se reduzir: e isto apesar do acentuado aumento dos gastos com os preparativos para a guerra.


Esses foram os rumos do crescimento e da transformação do mundo "desenvolvido". Contudo, o que mais forte impacto causava nas pessoas do mundo "desenvolvido" e industrial à época era mais até que a evidente transformação de suas economias, seu ainda mais evidente êxito. Vivia-se, obviamente, num tempo de prosperidade. Até as massas trabalhadoras se beneficiaram com essa expansão, ao menos na medida em que a economia industrial de 1875-1914 era predominantemente do tipo mão-de-obra intensiva e sua oferta de trabalho não especializado, ou de aprendizado rápido, para homens e mulheres que afluíam à cidade e à industria parecia quase ilimitada. Foi isso que permitiu que os europeus que emigraram para os EUA se adaptassem a um mundo industrial. Contudo, embora a economia fornecesse trabalho, ainda propiciava mais que um alívio modesto, às vezes mínimo, a miséria que a maioria dos trabalhadores encarou, no transcurso da maior parte da história, como seu destino. Na mitologia retrospectiva das classes operárias, as décadas que precederam 1914 não figuram como uma idade de ouro, como no caso dos europeus ricos ou mesmo da mais modesta classe média. Para estes a belle époque foi de fato o paraíso que seria perdido após 1914. Para os homens de negócio e os governos posteriores à guerra, 1913 seria o ponto de referência permanente, ao qual eles aspiravam retornar, deixando para trás uma era problemática. Vistos dos nublados e conturbados anos do pós-guerra, os momentos excepcionais do último boom anterior a ela faziam figura de ensolarada "normalidade", a que ambos aspiravam retornar. Em vão. Pois, como veremos, as mesmas tendências da economia pré 1914, que tornaram a era tão dourada para as classes médias, empurraram-na à guerra mundial, à revolução e aos distúrbios, excluindo a hipótese de uma volta ao paraíso perdido.




Passagens da Antiguidade Ao Feudalismo de Perry Anderson.

Passagens da Antiguidade

Ao Feudalismo.


Antiguidade Clássica


Passagens da Antiguidade ao Feudalismo

Perry Anderson. São Paulo. Brasiliense, 2000 da pag.18 à 137



MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVO


A gênese do capitalismo tem sido objeto de muitos estudos inspirados pelo materialismo histórico, desde que Marx lhe dedicou capítulos célebres de O Capital. Em contraste, a gênese do feudalismo permaneceu em grande parte sem estudos dentro da mesma tradição: como um diferenciado tipo de transição para um novo modo de produção, jamais foi integrada ao corpo geral da teoria marxista. Mas, como veremos, sua importância em relação ao padrão global da História talvez seja apenas pouco menor do que a transição para o capitalismo. O solene julgamento de Gibbon sobre a queda de Roma e o final da antiguidade emerge hoje paradoxalmente, e talvez pela primeira vez, em toda a sua verdade: "uma revolução que será sempre lembrada, e que ainda é sentida pelas nações da Terra". Em oposição ao caráter "cumulativo" do advento do capitalismo, a gênese do feudalismo na Europa derivou de um colapso "catastrófico" e convergente de dois modos de produção distintos e anteriores, e a recombinação de seus elementos desintegrados liberou a adequada síntese feudal, que portanto, sempre manteve um caráter híbrido. Os predecessores do modo feudal de produção foram naturalmente os modos de produção escravo em decomposição, sobre cujos fundamentos todo o enorme edifício do Império Romano fora construído outrora, e os primitivos modos de produção distendidos e deformados dos invasores germânicos, que sobreviveram em suas novas pátrias, depois das conquistas bárbaras. Esses dois mundos radicalmente distintos haviam passado por uma lenta desintegração e uma sutil interpenetração nos últimos séculos da Antiguidade.


Mas qual é modo de produção do feudalismo segundo a teoria marxista?


Para saber como isso aconteceu, é preciso olhar para trás, para a matriz original de toda civilização do mundo clássico. A Antiguidade greco-romana sempre constituiu um universo centralizado em cidades. O esplendor e a solidez da antiga polis helênica e da posterior República Romana, que ofuscaram tantos períodos subseqüentes, traduziam um nível de organização e cultura urbanas que jamais seria igualado em outro milênio. A filosofia, a ciência, a poesia, a história, a arquitetura, a escultura; o direito, a administração, a economia, os impostos; o voto, o debate, o recrutamento – tudo isso chegou a níveis de sofisticação e força inigualáveis. Ao mesmo tempo, esse friso de civilização citadina teve sempre algo do efeito de uma fachada trompe l'oeil (fachada enganosa) sobre sua posteridade. Por trás de toda essa organização e cultura não há uma economia urbana de alguma forma equiparável a elas: ao contrário, a riqueza material que sustentava sua vitalidade intelectual e cívica era extraída de forma esmagadora do campo. O mundo clássico era inalterável e maciçamente rural em suas proporções quantitativas básica. A agricultura representou através de sua história o setor inteiramente dominante da produção, fornecendo invariavelmente as principais fortunas das próprias cidades. As cidades greco-romanas nunca foram predominantemente comunidades de artífices, mercadores ou negociantes: elas eram, em sua origem e principio, conglomerados urbanos de proprietários de terras. Cada agrupamento municipal fosse da democrática Atenas, da Esparta oligárquica ou da Roma senatorial, era essencialmente dominado por proprietários agrários. Sua renda provinha do milho, do azeite e do vinho – os três grandes produtos básicos do mundo antigo, vindos de terras e fazendas fora do perímetro físico da cidade. Dentro dela, as manufaturas permaneciam poucas e rudimentares: o gênero das mercadorias urbanas normais nunca ia muito além dos têxteis, cerâmica, mobília e os utensílios de vidro. A técnica era simples, a demanda limitada e o transporte exorbitantemente custoso. O resultado era que as manufaturas da Antiguidade se desenvolviam tipicamente não por um aumento da concentração, como em épocas posteriores, mas pela descentralização e dispersão, já que a distância ditava maios os custos relativos da produção do que a divisão de trabalho. Uma idéia do peso comparativo das economias urbana e rural do mundo clássico é fornecida pelos rendimentos fiscais respectivos pagos por todos no Império Romano no século IV a.C., quando o comércio da cidade ficou sujeito finalmente a uma arrecadação imperial pela primeira vez, através da collatio lustralis (contribuição especial) de Constantino: a renda deste imposto nas cidades nunca subiu a mais de 5 por cento da taxa imposta às terras.

Certamente, a distribuição estatística da produção nos dois setores não era bastante para diminuir o significado econômico das cidades da Antiguidade. Para um modo homogeneamente agrícola, a renda bruta do comércio urbano podia ser muito pequena, mas superioridade liquida que ela poderia proporcionar a uma dada economia agrária sobre qualquer outra poderia ainda ser decisiva. A precondição desta feição diferenciada da civilização clássica era seu caráter costeiro. A antiguidade greco-romana era essencialmente mediterrânea em sua mais profunda estrutura. O comércio interlocal que a reunia só se podia fazer por água: o transporte marítimo era o único meio viável para as trocas de mercadorias a médias ou longas distâncias. A colossal importância do mar para o comércio pode ser avaliada pelo simples fato de que na época de Diocleciano era mais barato transportar o trigo da Síria para a Espanha – de um extremo ao outro do mediterrâneo – por embarcações do que levar por 120 quilômetros por via terrestre. Não é acidental, portanto que a zona do Egeu – um labirinto de ilhas, baías e promontórios – tenha sido o berço da cidade-estado que Atenas, seu maior exemplo, tenha tido no transporte marítimo os fundamentos de suas fortunas comerciais; que, quando a colonização grega se espalhou pelo Oriente Próximo no período helênico, o porto de Alexandria se tenha tornado a maior cidade do Egito, a primeira capital marítima em sua história; e que Roma, por sua vez situada as margens do Tibre, se tornado uma metrópole costeira.


A água era o meio insubstituível da comunicação e do comércio que tornava possível o crescimento urbano de uma sofisticação e uma concentração bem distantes do interior rural eu havia por trás. O mar era o condutor do brilho duvidoso da Antiguidade. A combinação especifica de cidade e campo que definia o mundo clássico, em ultima instância, só era operacional porque havia um lago em seu centro. O Mediterrâneo é o único grande mar interior em toda superfície da Terra: só ele oferecia a velocidade do transporte marítimo com a proteção terrestre contra os fortes ventos ou ondas em zona geográfica ampla. A excepcional posição da Antiguidade clássica dentro da História universal não pode ser isolada deste privilégio físico.

Em outras palavras, o Mediterrâneo proporcionou o adequado cenário geográfico para a civilização antiga. Seu conteúdo histórico e sua novidade, no entanto, estão na fundamentação social do relacionamento entre e cidade e campo dentro dela. O modo de produção escravo foi uma invenção decisiva do mundo greco-romano, que constitui a base definitiva tanto para suas realizações quanto para seu eclipse. A originalidade deste modo de produção deve ser sublinhada. A escravidão em si tinha existido sob várias formas através da Antiguidade no Oriente Próximo (como aconteceria mais tarde em outros lugares na Ásia); mas ela sempre fora uma condição juridicamente impura – tomando com freqüência a forma de servidão por débitos ou de trabalho penal – entre outros tipos mistos de servidão, formando simplesmente uma categoria muito baixa num continuum amorfo de dependência e falta de liberdade que se estendia bem acima na escala social. Também nunca foi o tipo predominante de apropriação do excedente nas monarquias pré-helênicas: era um fenômeno residual que existia a margem da principal força de trabalho rural. Os impérios Sumérios, Babilônico, Assírio e Egípcio – Estados ribeirinhos construídos sobre uma agricultura irrigada e intensiva que contrastava com as culturas simples de solo seco do futuro mundo mediterrâneo – não eram economias de base escrava, e seus sistemas jurídicos não tinham concepção nítida da propriedade de bens móveis. Foram as cidades-estados gregas que primeiro tornaram a escravidão absoluta na forma e dominante na extensão, transformando-a assim de sistema auxiliar em um modo sistemático de produção. O mundo helênico clássico, é claro, jamais repousou exclusivamente no uso do trabalho escravo. Os camponeses livres, os rendeiros dependentes e os artesãos urbanos sempre coexistiram com os escravos, em variadas combinações, nas diferentes cidades-estado da Grécia. Seu próprio desenvolvimento externo ou interno, além do mais, podia alterar muito as proporções entre escravos e trabalhadores livres, de um século para o outro: cada formação social concreta é sempre é sempre uma combinação especifica de diferentes modos de produção, e as da Antiguidade não eram uma exceção

Mas o modo de produção dominante na Grécia clássica, que governava a articulação complexa de cada economia local e que deixou sua impressão em toda civilização da cidade-estado, foi o da escravidão. Isto também seria verdadeiro para Roma, da mesma forma. O mundo antigo nunca foi contínua ou ubiquamente marcado pela predominância do trabalho escravo. Mas suas grandes épocas clássicas, quando floresceu a civilização da antiguidade – a Grécia, nos séculos V e IV a.C., e Roma, do século II a.C. ao século II d.C. -, foram aquelas em que a escravidão era maciça e generalizada, entre outros sistemas de trabalho. O solstício da cultura urbana clássica também sempre testemunhou o zênite da escravidão; e o declínio de uma, na Grécia helênica ou na Roma cristã, era da mesma forma invariavelmente marcado pelo apagar-se da outra.


A proporção global da população escrava no berço original do modo de produção escravo, a Grécia pós-arcaica, não pode ser calculada com exatidão, pela ausência de quaisquer estatísticas confiáveis. As estimativas mais confiáveis variam enormemente, mas uma avaliação recente é de que a proporção entre escravos e cidadãos livres na Atenas de Péricles estava em torno de 3:2, o número relativo de escravos em Quios, Égina ou Corinto foi em várias ocasiões provavelmente maior; a população hilota sempre ultrapassou bastante a dos cidadãos de Esparta. No século IV a.C. Aristóteles podia observar com naturalidade que "o Estado possuiria escravos públicos até que houvesse três para cada ateniense". Na Grécia clássica, os escravos foram, assim, empregados pela primeira vez na manufatura, na indústria e na agricultura, além da escala doméstica. Ao mesmo tempo enquanto o uso da escravidão se tornava generalizado, sua natureza, de maneira correspondente, se tornava absoluta: ela já não era mais uma forma de servidão relativa entre muitas, no decorrer de uma continuidade gradual, e sim uma condição polarizada da perda completa da liberdade, justaposta a uma nova liberdade sem impedimentos. Pois foi exatamente a formação de uma sub-população escrava nitidamente delimitada o que, inversamente, elevou a cidadania grega a alturas até então desconhecidas de liberdade jurídica consciente. A escravidão e a liberdade helênicas eram indivisíveis: uma era a condição estrutural da outra, num sistema diádico sem precedentes ou equivalentes nas hierarquias sociais dos impérios do Oriente Próximo, que também ignoravam tanto a noção de livre-cidadania quanto à de propriedade servil. Esta profunda mudança jurídica foi em si o correlato social e ideológico do "milagre" econômico forjado pelo advento do modo de produção escravo.


A civilização da Antiguidade clássica representou, como já vimos, a supremacia anômala da cidade sobre o campo numa economia esmagadoramente rural: uma antítese do mundo feudal primitivo que lhe sucedeu. A condição para a possibilidade desta grandiosidade metropolitana na ausência de uma indústria municipal era a existência do trabalho escravo no campo: somente ela poderia liberar uma classe de proprietários de terra tão radicalmente de suas raízes rurais de maneira a poder ser transmutada em uma cidadania essencialmente urbana que ainda assim continuava tirando suas riquezas do solo. Aristóteles expressou a resultante ideologia social da Grécia clássica tardia com esta despreocupada observação: "Aqueles que cultivam a terra devem idealmente ser escravos, nem todos recrutados de um só povo, nem ardentes no temperamento (de modo que sejam laboriosos no trabalho e imunes a rebelião), ou não tão idealmente, servos bárbaros de semelhante caráter". Era típico do modo de produção escravo plenamente desenvolvido no campo romano que até funções de administração fossem delegadas a escravos supervisores e feitores, que punham as turmas escravas para trabalhar nas terras. O estado escravo, ao contrário da herdade feudal, permitia uma disjunção permanente entre a residência e o rendimento; o produto excedente que proporcionava as fortunas da classe possuidora podia ser extraído sem a sua presença na terra. A conexão que unia o produtor rural imediato e o apropriador urbano de sua produção não era um laço habitual, e não era mediada pela localização da própria terra (como ocorreu mais tarde na servidão adscritiva). Ao contrário, era caracteristicamente o ato comercial e universal da compra de mercadorias realizada nas cidades, onde o comércio escravo tinha seus próprios mercados. O trabalho escravo da Antiguidade clássica, portanto, incorporava dois atributos contraditórios em cuja unidade está o segredo da paradoxal precocidade urbana do mundo greco-romano. Por um lado, a escravidão representava a mais radical degradação rural imaginável do trabalho – a conversão de seres humanos em meios inertes de produção, por sua privação de todo direito social e sua legal assimilação às bestas de carga: na teoria romana, o escravo da agricultura era designado como sendo um instrumentum vocale, um instrumento vocal, um grau acima do gado, que constituía um instrumentum semi vocale, um instrumento semi vocal, e dois acima do implemento, que era um instrumentum mutum, um instrumento mudo. Por outro lado, a escravidão era simultaneamente a mais drástica comercialização urbana concebível de trabalho: a total redução da individualidade do trabalhador a um objeto padronizado de compra e venda, nos mercados metropolitanos de comércio de mercadorias. A destinação da maior parte dos escravos da Antiguidade clássica era o trabalho agrário (isto não acontecia assim sempre em todos os lugares; mas era este o caso, conjunto): sua reunião, alocação e despacho eram normalmente efetuados a partir dos mercados das cidades, onde muitos deles, claro, eram empregados também. Assim, a escravidão era o vínculo que unia cidade e campo, para o desmedido beneficio da polis, ela tanto mantinha a agricultura cativa eu permitia o dramático distanciamento de uma classe dominante urbana e suas origens rurais, quanto promovia o comércio interurbano que era o complemento desta agricultura no mediterrâneo. Os escravos, entre outras vantagens, era um bem eminentemente móvel num mundo onde os transtornos do transporte condicionavam a estrutura de toda a economia. Eles podiam ser deslocados sem dificuldade de uma região para outra; podiam ser treinados em muitas diferentes especializações: em épocas de abundância de estoque, além disso, eles serviam para manter os custos baixos onde trabalhadores contratados ou artífices estivessem trabalhando, por constituírem uma fonte alternativa. Á riqueza e o conforto da classe urbana proprietária da Antiguidade clássica – acima de tudo, a de Atenas e Roma em seu apogeu – repousavam sobre o amplo excedente que rendia a difusa presença desse sistema de trabalho, que não deixava nenhum outro intacto.


O preço a pagar por esse esquema brutal e lucrativo era, contudo, alto. As relações escravagistas de produção determinavam alguns limites insuperáveis para as antigas forças de produção na época clássica. Acima de tudo, eles tenderam a paralisar a produtividade na agricultura e na indústria. Houve naturalmente, alguns melhoramentos técnicos na economia da Antiguidade clássica. Nenhum modo de produção está totalmente desprovido de progresso material em sua fase ascendente, e o modo de produção escravo em seus primórdios registrou alguns avanços importantes no aparelhamento econômico desenvolvido no arcabouço de sua nova divisão social do trabalho. Entre eles podem contar-se a disseminação de mais lucrativas culturas de vinho e azeite, a introdução de moinhos rotativos para cereais e a melhoria na qualidade do pão. Foram criadas as prensas de parafuso, o vidro soprado se desenvolveu e os sistemas de produção de calor refinaram-se; a combinação de culturas, o conhecimento botânico e a drenagem do campo provavelmente também progrediram. Não houve portanto uma parada técnica no mundo clássico. Ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo, não ocorreu um enxame de invenções que impulsionasse a economia antiga para forças de produção qualitativamente novas. Nada é mais impressionante, em qualquer comparação retrospectiva, do que a estagnação técnica global da Antiguidade. Basta contrastar o registro de seus oito séculos de existência – da ascensão de Atenas à queda de Roma sucedeu, para conceber a diferença entre uma economia relativamente estática e uma dinâmica. Mais dramático ainda, naturalmente, era o contraste dentro do próprio mundo clássico entre sua vitalidade cultural e superestrutural e seu embotamento infra-estrutural: a tecnologia manual da Antiguidade era exígua e primitiva não apenas pelos padrões externos de uma história posterior, mas, sobretudo pela medida de seu próprio firmamento intelectual – o qual, em muitos aspectos críticos, sempre permaneceu bem mais alto que o da Idade Média ainda por chegar. Há pouca dúvida de que a estrutura da economia escrava é que foi fundamentalmente responsável por essa extraordinária desproporção. Aristóteles, para as eras posteriores o maior e mais representativo pensador da Antiguidade, concisamente resumiu o principio social da época em seu aforismo: "O melhor Estado não fará de um trabalhador manual um cidadão, pois a massa de trabalhadores manuais é hoje escrava ou estrangeira". Um tal Estado representava a norma ideal do modo de produção escravo, nuca realizado em alguma formação social concreta do mundo antigo. Mas sua lógica esteve sempre intrinsecamente presente na natureza das economias clássicas.


Uma vez tornando-se o trabalho manual profundamente associado à perda da liberdade, não havia uma lógica social livre para a imaginação. Os efeitos sufocantes da escravidão sobre a técnica não eram uma simples função da baixa idade média da produtividade do trabalho escravo em si, ou mesmo do volume de seu uso: afetavam sutilmente todas as formas de trabalho. Marx tentou expressar o tipo de ação que exerciam numa famosa, senão crítica, fórmula teórica: "Em todas as formas de sociedade existe uma determinada produção e suas relações, que atribuem a todas as outras produções e suas relações seu alcance e sua influência. É uma iluminação generalizada na qual todas as outras cores estão mergulhadas e que modifica sua tonalidade especifica. É um éter especifico que define a gravidade especifica de tudo que se encontra dentro dele". Os escravos da agricultura notoriamente tinham pouco incentivo para executar suas tarefas econômicas competente e conscienciosamente uma vez relaxadas a vigilância; seu emprego otimizado era em vinhedos ou olivais compactos. Por outro lado muitos artífices e alguns plantadores entre os escravos eram na maioria das vezes notavelmente habilidosos, dentro dos limites das técnicas que prevaleciam. O retraimento estrutural da escravidão na tecnologia, assim, não assentava tanto numa causalidade intra-econômica direta, embora isto fosse importante em si, quanto na ideologia social mediata que envolvia a totalidade do trabalho manual no mundo clássico, contaminando do trabalho contratado e mesmo o independente com o estigma do aviltamento. O trabalho escravo em geral não era menos produtivo do que o livre, embora, na verdade, em certos campos isso ocorresse; mas estabeleceu o ritmo de ambos, de forma que nenhuma grande divergência jamais se desenvolveu entre os dois num espaço econômico que excluía a aplicação da cultura à técnica para invenções. O divorcio entre o trabalho material e a esfera da liberdade era tão rigoroso que os gregos não tinham uma palavra em sua língua nem mesmo para expressar o conceito de trabalho, tanto como função social, quanto como conduta pessoal. O trabalho na agricultura e o trabalho artesanal eram supostas "adaptações" à natureza, e não transformações dela; eram formas de serviço. Também Platão implicitamente excluía os artesãos da polis: para ele, "o trabalho permanece alheio a qualquer valor humano e em certos aspectos parece mesmo a antítese do que seja essencial ao homem". A técnica, como uma instrumentalização progressiva e premeditada do mundo natural pelo homem, era incompatível com a assimilação em grande escala do homem ao mundo natural como seus "instrumentos falantes". A produtividade era fixada pela rotina permanente do instrumento vocal, eu desvalorizava todo o trabalho pela exclusão de qualquer preocupação com estratagemas para poupá-lo. A via típica para a expansão na Antiguidade, para qualquer estado, era assim sempre um caminho "lateral" – a conquista geográfica – e não o avanço econômico. A civilização clássica foi, por conseguinte, de caráter intrinsecamente colonial: a cidade-estado celular invariavelmente se reproduzia nas fases de ascensão, pelo povoamento e pela guerra. O saque, o tributo e os escravos eram os objetos centrais do engrandecimento, tanto meios como finalidades para a expansão colonial. O poder militar estava mais intimamente ligado ao crescimento econômico do que talvez em qualquer outro modo de produção, antes ou depois, porque a principal fonte do trabalho escravo eram normalmente prisioneiros de guerra, enquanto o aumento das tropas urbanas livres para a guerra dependia da manutenção da produção doméstica por escravos: os campos de batalha forneciam a mão-de-obra para os campos de cereais e vice-versa – os trabalhadores capturados permitiam a criação de exércitos de cidadãos. Três grandes ciclos da expansão imperial podem ser traçados na Antiguidade Clássica, cujas sucessivas feições variadas estruturam todo o padrão do mundo greco-romano: o ateniense, o macedônio e o romano. Cada um representou uma determinada solução para os problemas políticos e organizacionais das conquistas de ultramar, que era integrada e ultrapassada pela próxima, sem que as bases subjacentes de uma civilização urbana comum fossem alguma vez transgredidas.


Em Busca de uma Síntese


A síntese histórica que naturalmente ocorreu foi o feudalismo. O termo preciso – síntese – é de Marx, junto com os de outros historiadores de seu tempo. A catastrófica colisão dos dois modos anteriores de produção em dissolução – o primitivo e o antigo – produziu a ordem feudal que se disseminou por toda a Europa medieval. Já estava evidente para os pensadores do Renascimento, quando esta gênese foi debatida pela primeira vez, que o feudalismo ocidental era resultado especifico de uma fusão dos legados romano e germânico. A controvérsia moderna sobre a questão data essencialmente de Montesquieu, que declarou serem germânicas as origens do feudalismo no Iluminismo. Desde então, o problema das "proporções" exatas da mistura de elementos romanos e germânicos que geraram o feudalismo levantou paixões de sucessivos historiadores nacionalistas. Na verdade os tons do final da Antiguidade eram freqüentemente alterados, dependendo do patriotismo do cronista. Para Dopsch, que escreveu na Áustria depois da Primeira Guerra Mundial, o colapso do Império Romano foi apenas a culminação de séculos de pacífica absorção pelos povos germânicos: foi vivido como um calma libertação pelos habitantes do Ocidente. "O mundo romano foi gradualmente conquistado do interior pelos germanos, que o haviam penetrado pacificamente por muitos séculos e assimilado sua cultura, e realmente assumido a responsabilidade de sua administração, de maneira que a remoção de seu domínio político foi somente a conseqüência final de um demorado processo de mudanças, como a retificação da nomenclatura de uma empresa cujo nome há muito deixou de corresponder aos verdadeiros diretores do negócio... Os germanos não eram inimigos para destruir ou varrer a cultura romana, ao contrário: eles a preservaram e desenvolveram. Para Lot, escrevendo na França à mesma época, o final da Antiguidade foi um desastre inimaginável, o holocausto da própria civilização: a lei germânica era responsável pela "violência perpétua, sem rédeas, e frenética", e pela "insegurança da propriedade" da época seguinte, cuja "terrível corrupção" fez dele "um período realmente maldito da história". Na Inglaterra, onde não houve um confronto, mas somente uma pausa entre as ordens romana e germânica, a controvérsia foi desviada para a invasão inversa da conquista normanda, e Freeman e Round sucessivamente polemizaram sobre os relativos méritos das contribuições anglo-saxônicas e latinas ao feudalismo local. As cinzas desta disputa ainda brilham hoje; os historiadores soviéticos trocaram farpas sobre elas em uma conferência recente na Rússia. Naturalmente, na verdade a precisa mistura de elementos romanos ou germânicos no puro modo feudal de produção em si é de importância muito menor do que sua respectiva distribuição nas formações sociais variantes que emergiram na Europa medieval. Em outras palavras, como veremos, uma tipologia do feudalismo europeu é necessária – em vez de um simples pedigree.


A derivação original de instituições feudais específicas muitas vezes parece emaranhada em qualquer caso, dada a ambigüidade das fontes e o paralelismo de desenvolvimentos dentro dos dois sistemas sociais antecedentes. A vassalagem assim pode ter tido suas principais raízes tanto no comitatus germânico quanto na clientela galo-romana: as duas formas de corte aristocrática que existiram em cada lado do Reno bem antes do fim do Império, ambas tendo contribuído para o surgimento definitivo do sistema de vassalagem O domínio, que no devido tempo se fundiu para formar o feudo, pode ser traçado a partir das últimas práticas eclesiásticas romanas e das distribuições tribais germânicas da terra. O manor, por outro lado, certamente é derivado do fundus ou Villa galo-romanos, que não tinham equivalente bárbaro: imensas propriedades auto-suficientes e cultivadas por coloni, que entregavam a produção em espécie a grandes proprietários, esboço claro de uma economia senhorial. Os enclaves comunais da aldeia medieval, de sua parte, eram basicamente uma herança germânica, sobrevivente dos sistemas rurais originais da floresta após a evolução do campesinato bárbaro do regime alodial para o de rendeiros dependentes. A própria servidão provavelmente descende tanto do clássico estatuto do colonus como da lenta degradação de camponeses germânicos livres por "recomendação" meio coercitiva a guerreiros de clãs. O sistema legal e constitucional desenvolvido na Idade Média era híbrido da mesma forma. Uma justiça de caráter realmente popular e uma tradição de obrigações formalmente recíprocas entre governantes e governados numa comunidade tribal pública deixaram marca muito difundida nas estruturas jurídicas do feudalismo, mesmo quando as cortes populares não sobreviveram, como aconteceu na França. O sistema de propriedades que surgiu mais tarde nas monarquias feudais deveu muito a este último em particular. Por outro lado, o legado romano de uma lei codificada e escrita foi também de importância central para a síntese jurídica específica da Idade Média; a herança conciliar da Igreja Cristã Clássica foi também sem dúvida decisiva para o desenvolvimento do sistema de propriedade. No auge da forma de governo medieval, a instituição da própria monarquia feudal representou inicialmente um amálgama mutável do líder de guerra germânico, semi-eletivo e com funções seculares rudimentares, e o governante imperial romano, que era um autocrata sagrado de ilimitados poderes e responsabilidades.


O complexo infra e supra-estrutural que iria compor a estrutura geral de uma totalidade feudal na Europa teve assim uma dupla origem, depois do colapso e confusão da Idade Média. Entretanto, uma única instituição abarcou toda a transição da Antiguidade à Idade Média em continuidade essencial: a Igreja Cristã. Ela foi, realmente, o principal e frágil aqueduto sobre o qual passavam agora as reservas culturais do Mundo Clássico ao novo universo da Europa Feudal, aonde a escrita se torna clerical. Assunto histórico singular par excellence, cuja peculiar temporalidade jamais coincidiu com a de uma simples seqüência de uma economia ou forma de governo à outra, mas que se justapôs e sobreviveu a muitas em seu próprio ritmo, a Igreja não recebeu nunca uma teorização dentro do materialismo histórico. Aqui não se pode fazer nenhuma tentativa para remediar esta omissão. Mas são necessários alguns comentários breves sobre o significado de seu papel na transição da Antiguidade ao feudalismo, já que isto tem sido alternativamente exagerado ou negligenciado em muitas discussões históricas da época. No final da Antiguidade, a Igreja Cristã, como já vimos, contribuiu indubitavelmente para o enfraquecimento dos poderes de resistência do sistema romano imperial. Conseguiu isto, não desmoralizando doutrinas ou valores extramundanos, como acreditavam os historiadores do Iluminismo, mas por seu absoluto peso temporal. O vasto aparato clerical que ela desovou no último Império foi uma das principais razões da sobrecarga parasítica que exauriu a economia e a sociedade romana. Foi ainda agregada uma segunda superburocracia ao já opressivo ônus do Estado secular. Por volta do século VI, os bispos e o clero no Império remanescente eram em muito maior número que os agentes administrativos e funcionários do Estado, e recebiam salários consideravelmente mais altos. A carga intolerável deste edifício desequilibrado foi uma determinante central do colapso do Império. A tese clara de Gibson de que o cristianismo foi uma das causas fundamentais da queda do Império Romano – um resumo final expressivo do idealismo iluminista – desta maneira permite uma reformulação materialista nos dias de hoje.


Ainda assim, a Igreja foi também o terreno movediço dos primeiros sintomas da libertação de técnica e cultura a partir dos limites de um mundo construído sobre a escravidão. As realizações extraordinárias da civilização greco-romana haviam sido propriedade de um pequeno estrato governante, inteiramente divorciado da produção. O trabalho manual era identificado com a servidão e era eo ipso degradante. Economicamente, o modo de produção escravo levou à estagnação técnica: não havia estímulo para técnicas que economizassem o trabalho. Assim, a tecnologia alexandrina, como vimos, persistiu através de todo o Império Romano: foram feitas poucas invenções significativas, e nenhuma jamais foi aplicada extensivamente. Por outro lado, culturalmente, tornou possível a ilusória harmonia entre o homem e o universo natural que marcou a arte e a filosofia de grande parte da Antiguidade Clássica: o estar inquestionavelmente isento do trabalho era uma das precondições à sua serena ausência de tensão em relação à natureza.


A labuta da transformação material ou mesmo de sua supervisão gerencial era um substrato consideravelmente excluído desta esfera. A grandeza da herança cultural e intelectual do Império Romano não foi acompanhada apenas de uma imobilidade técnica: ela estava restrita por suas próprias precondições à camada mais fina das classes governantes provinciais e metropolitanas. O índice mais notável de sua limitação verticalizada foi o fato de que a grande massa da população no Império pagão não conhecia o latim. A própria língua do governo e das letras era monopólio de uma pequena elite. A ascensão da Igreja Cristã foi o que primeiro assinalou uma subversão e alteração deste padrão. O cristianismo rompeu a união entre o homem e a natureza, entre o espírito e o mundo carnal, potencialmente distorcendo o relacionamento entre os dois em direções opostas e atormentadas: o ascentismo e o ativismo. De imediato, a vitória da Igreja no final do Império nada fez para alterar as atitudes tradicionais em relação à tecnologia ou à escravidão. Ambrósio de Milão expressou a nova opinião oficial ao condenar como ímpias até as puramente teóricas ciências da astronomia e da geometria: "Não conhecemos os segredos do imperador e mesmo assim reivindicamos conhecer os de Deus". Os padres da Igreja, de Paulo a Jerônimo, também aceitavam de modo unânime a escravidão, apenas aconselhando os escravos a serem obedientes a seus senhores, e os senhores a serem justos com seus escravos – a verdadeira liberdade não seria encontrada neste mundo, de qualquer maneira... Na prática, a Igreja destes séculos era muitas vezes uma grande proprietária institucional de escravos, e seus bispos, quando fosse o caso, poderiam ir ao encalço de seus direitos legais sobre uma propriedade fugitiva com um pouco mais de zelo punitivo comum.


Entretanto, à margem do próprio aparato eclesiástico, o crescimento da vida monacal apontava para uma possível direção diferente. Os camponeses egípcios tinham uma tradição de eremitério solitário no deserto, ou anachoresisi, como forma de protesto contra a coleta de impostos ou outros males sociais; isso foi adaptado por Antônio numa religiosidade anacoreta ascética no final do século III d.C. Foi então desenvolvido por Pacômio no início do século IV na forma de cenobitismo comunal nas áreas cultivadas próximas ao Nilo, onde eram recomendados o trabalho agrícola e a leitura, assim como a prece e o jejum. No ano 370, Basílio reuniu o ascetismo, o trabalho manual e a instrução intelectual num regulamento monástico pela primeira vez. Entretanto, embora esta evolução possa ser vista retrospectivamente como um dos primeiros sinais de uma lenta maré de mudança nas atitudes sociais em relação ao trabalho, o desenvolvimento da vida monacal no final do Império Romano apenas agravou o parasitismo econômico da Igreja, afastando ainda mais a mão-de-obra da produção. Nem teve também daí em diante qualquer papel especialmente tônico na economia bizantina, onde o monasticismo oriental logo se tornou contemplativo na melhor da hipóteses, e, na pior, ocioso e obscurantista. Por outro lado, transplantando ao Ocidente, e reformulado por Benedito de Núrcia durante as sombrias profundezas do século VI, os princípios monásticos revelaram-se organizacionalmente eficazes e ideologicamente influenciadores da Idade Média em diante. Nas ordens monásticas do Ocidente o trabalho manual e o intelectual estavam unidos providencialmente a serviço de Deus. O pesado trabalho agrícola adquiria a dignidade do culto divino, e era desempenhado por monges letrados: laborare est orare. Com isto caía uma das barreiras à invenção técnica e ao progresso. Seria um erro atribuir esta mudança a qualquer poder auto-suficiente dentro da Igreja - o curso diferente dos acontecimentos no Oriente e no Ocidente apenas seria o bastante para deixar claro que foi todo o complexo dos relacionamentos sociais, e não a própria instituição religiosa em si, que definitivamente fixou os papéis econômicos e culturais do monasticismo. Sua carreira produtiva só poderia iniciar uma vez que a desintegração da escravidão clássica houvesse liberado os elementos do feudalismo. É a flexibilidade da Igreja nesta difícil passagem que impressiona, e não o seu rigor.


Ao mesmo tempo a Igreja, sem a menor dúvida, também foi diretamente responsável por outra formidável transformação silenciosa nos últimos séculos do Império. A própria vulgarização e corrupção da cultura clássica, que Gibbbon denunciaria, era na verdade parte de um gigantesco processo de assimilação e adaptação dessa cultura por uma população mais vasta, eu iria arruiná-la e salvaguardá-la no colapso de sua infra-estrutura tradicional. A mais impressionante manifestação desta transmissão foi ainda outra vez a da linguagem. Até o século III, os camponeses da Gália e da Espanha falaram suas próprias línguas célticas, impermeáveis a cultura da classe governante clássica: qualquer conquista germânica dessas províncias a esta altura teria conseqüências incalculáveis para a História da Europa mais tarde.Com a cristianização do Império, os bispos e o clero das províncias ocidentais, assumindo a conversão da massa da população rural, latinizaram permanentemente sua falta durante os séculos IV e V. As línguas romanas foram o efeito desta popularização, um dos elos sociais mais essenciais da continuidade entre a Antiguidade e a Idade Média. As conseqüências de uma conquista germânica destas províncias ocidentais sem sua anterior latinização deve apenas ser encarada pela importância momentosa que seria evidente no caso de ser realizada.


Esta realização essencial da Igreja primitiva indica seu verdadeiro lugar e função na transição ao feudalismo. Sua eficácia autônoma não seria encontrada na esfera das estruturas da relações econômicas ou sociais, onde ás vezes tem sido equivocadamente procurada, mas na esfera cultural acima destas relações – em toda a sua limitação e imensidão. A civilização da Antiguidade Clássica foi definida pelo desenvolvimento de superestruturas de sofisticação e complexidade sem precedentes sobre estruturas materiais de uma relativa rusticidade e simplicidade: existe sempre uma desproporção dramática no mundo greco-romano entre o exagerado firmamento intelectual e político e o acanhado mundo econômico eu lhe era subjacente. Quando chegou o colapso final, nada era menos óbvio que o fato de que esta herança superestrutural – agora impossivelmente distanciada das realidades sociais imediatas – iria sobreviver a ela, embora de forma comprometida. Era necessário um recipiente específico para isto, suficientemente distanciado das instituições clássicas da Antiguidade e ainda assim moldado por elas, e por isto capaz de fugir ao desmoronamento geral para transmitir as misteriosas mensagens do passado ao futuro próximo. A Igreja desempenhou objetivamente este papel. Em certos aspectos essenciais, a civilização superestrutural da Antiguidade permaneceu superior à do feudalismo por um milênio – até a época em que passou a chamar-se conscientemente de Renascimento, para assinalar a regressão que se interpunha. A condição para este poder omisso através dos séculos caóticos e primitivos da Idade Média foi a resistência da Igreja. Nenhuma outra transição dinâmica de um modo de produção a outro revela a mesma obliqüidade em seu desenvolvimento superestrutural: nenhuma outra transição engloba uma instituição de alcance comparável.


A Igreja foi a indispensável ponte entre duas épocas, numa passagem "catastrófica" e não "Cumulativa" entre dois modos de produção (cuja estrutura assim diferia necessariamente in Toto da transição entre o feudalismo e o capitalismo) Significativamente, foi o mentor oficial da primeira tentativa sistemática de fazer "renascer" o Império no Ocidente – a monarquia carolíngia. Com o Estado Carolíngio, começa a história do feudalismo propriamente dito. Este esforço maciço ideológico e administrativo de "recriar" o sistema imperial do velho Mundo Antigo, na verdade, por uma inserção característica, incluía e ocultava o involuntário assentamento das fundações do novo. Na era carolíngia foram dados os passos decisivos para a formação do Feudalismo.


A imponente expansão da nova dinastia franca forneceu, entretanto, pouca sugestão imediata de seu legado definitivo à Europa. O tema manifesto dominante era a unificação política e militar do Ocidente. A derrota dos árabes em Poitiers, em 733, infligida por Carlos Martel, deteve o avanço do Islã, que acabara de absorver o Estado visigodo na Espanha. Daí em diante, em trinta rápidos anos, Carlos Magno anexou a Itália Lombarda, conquistou a Saxônia e a Frísia e incorporou a Catalunha. Tornou-se então o único governante do continente cristão além das fronteiras de Bizâncio, com exceção do inacessível litoral das Astúrias. No ano 800, ele assumiu o título – extinto a muito – de imperador do Ocidente. A expansão carolíngia não foi um simples acréscimo territorial. Suas reivindicações imperiais corresponderam a um verdadeiro renascimento administrativo e cultural através dos limites do Ocidente continental. O sistema de cunhagem de moedas foi padronizado, e recuperado seu controle central. Em muito próxima coordenação com a Igreja, a monarquia carolíngia patrocinou uma renovação da literatura, filosofia, arte e educação. Missões religiosas eram enviadas às terras pagãs além do Império. A grande nova zona de fronteira da Germânia, ampliada pela sujeição das tribos saxônicas, pela primeira vez foi cuidadosamente atendida e sistematicamente convertida – um programa facilitado pela mudança da corte carolíngia mais para o leste, em Aachen, a meio caminho entre o Elba e o Loire. Além disto, uma rede administrativa elaborada e centralizada desceu sobre toda a massa, da Catalunha a Scheleswig e da Normândia à Estíria. Sua unidade básica era o condado, derivado da velha civitatis romana. Nobres de confiança eram nomeados condes com poderes judiciais e militares para governar estas regiões, numa clara e firme delegação de autoridade pública, revogável pelo imperador. Havia uns 250 a 350 destes agentes pelo império; eles não tinham salário, mas recebiam uma porção dos rendimentos reais locais e dotes em terras no condado As carreiras cortesãs não estavam confinadas a um único distrito qualquer: um nobre competente podia ser transferido sucessivamente a diversas regiões, embora na prática as revogações ou mudanças de condado não fossem freqüentes. Os cruzamentos por casamentos e a migração de família proprietárias de terras das várias regiões do Império criaram uma certa base social para uma aristocracia "supra-étnica" imbuída com a ideologia imperial. Ao mesmo tempo, o sistema regional de condados estava sobreposto por um grupo central menor de magnatas clericais e seculares, oriundos principalmente da Lorena e da Alsácia, muitas vezes até mais próximos do círculo pessoa do próprio imperador. Este proporcionaram os missi dominici, uma reserva móvel de agente imperiais diretos enviados como plenipotenciários para lidar com problemas especialmente difíceis ou reclamações em províncias distantes. Os missi se tornaram uma instituição regular do Governo de Carlos Magno a partir do ano 802; tipicamente enviados aos pares, cada vez mais passaram a ser recrutados entre os bispos e abades, para isolá-los das pressões locais em suas missões. Foram eles que no principio garantiram a integração efetiva da imensa rede cortesã. Passou-se a fazer um uso crescente de documentos escritos, em esforços para melhorar as tradições de total iliteralidade herdada dos merovíngios. Na prática, sempre havia brechas e atrasos neste maquinário, cujo funcionamento era sempre extremamente lento e desajeitado, na ausência de alguma burocracia palatina séria para proporcionar uma integração impessoal do sistema. Contudo, dadas as condições da época, os objetivos e a escala dos ideais administrativos carolíngios foram uma realização formidável.


As inovações embrionárias reais deste período, entretanto, estão em outra parte – no surgimento gradual das instituições fundamentais do feudalismo subjacentes ao aparato do governo imperial. A Gália merovíngia conhecera o juramento de lealdade ao monarca reinante e a concessão de terras ao nobres servidores. Mas estes nunca estavam combinados num sistema único ou significativo. Os governantes merovíngios habitualmente distribuíam propriedades diretamente a partidários leais, recorrendo ao termo eclesiástico beneficium para tais doações. Mais tarde, muitas das propriedades assim distribuídas foram confiscadas da Igreja pela linhagem dos Arnolfos com o objetivo de recrutar tropas adicionais para seus exércitos enquanto isso, a Igreja era compensada com a introdução do dízimo por Pepino III, doravante a única forma mais aproximada a uma taxação geral no reino franco. Mas foi a época do próprio Carlos Magno que anunciou a síntese crítica entre as doações de terras e as ligações de serviço. No decorrer do século VIII, a vassalagem (homenagem pessoal) e o benefício (concessão de terras) lentamente fundiram-se, ao passo que, durante o século IX, o benefício, por sua vez, se tornou cada vez mais assimilado à honra (ofício e jurisdição pública). Desde então, as concessões de terras pelos governantes deixaram de ser doações, para tornarem-se arrendamentos condicionais, mantidos em troca de serviços juramentados; e a posições administrativas inferiores com isso tendiam a equipararse-lhes legalmente. Uma classe de Vassi dominici, vassalos diretos do imperador, que recebiam seus benefícios diretamente de Carlos Magno, agora se desenvolvia no campo, formando uma classe proprietária de terras local disseminada por entre as autoridades cortesãs do império. Eram estes Vassi reais que proporcionavam o núcleo do exército carolíngio, chamado ano após ano para serviço nas constantes campanhas de Carlos Magno no exterior. Mas o sistema se estendia bastante além da direta lealdade ao imperador. Outros vassalos eram beneficiários de príncipes, que por sua vez eram vassalos do governante supremo. Ao mesmo tempo, imunidades legais, inicialmente peculiares à Igreja – isenções jurídicas concedidas com base nos códigos germânicos hostis no início das Idade Média – começaram a estender-se aos guerreiros seculares. Daí por diante, os vassalos equipados com tais imunidades estavam imunes à interferência da corte em suas propriedades. O resultado desta evolução convergente foi o surgimento do "feudo", como uma concessão de terra delegada, investida de poderes jurídicos e políticos, em troca de serviço militar. O desenvolvimento militar, pela mesma época, com a cavalaria pesadamente armada, contribuiu para a consolidação deste novo vínculo institucional, embora não tenha sido responsável por seu aparecimento. Levou um século para que o sistema feudal se tornasse amoldado e enraizado no Ocidente; mas seu núcleo inequívoco era já visível durante o domínio de Carlos Magno.


Entretanto, as constantes guerras do reino tendiam cada mais vez mais a oprimir a massa da população rural. A condição prévia do campesinato guerreiro livre da sociedade germânica tradicional havia sido cultivo móvel, e as guerras eram locais e sazonais. Uma vez estabilizada a colonização agrícola e tendo as campanhas militares se tornado de maior alcance e mais demoradas, a base material para uma unidade social de lutas e cultivo estava inevitavelmente quebrada. A guerra se tornou a prerrogativa distante da cavalaria nobre, enquanto um campesinato sedentário trabalhava em casa para manter um ritmo permanente de lavouras, desarmado e sobrecarregado com o abastecimento para os exércitos reais. O resultado foi uma deterioração geral na posição da massa da população agrária. Assim, foi também neste período que tomou forma a unidade feudal característica de produção cultivada por um campesinato dependente. O império Carolíngio era, na prática, um imenso trato de terra fechado, com um mínimo comércio exterior (apesar de suas fronteiras com o Mediterrâneo e o Mar do Norte) e com uma circulação de dinheiro morosa: a resposta econômica ao isolamento foi o desenvolvimento de um sistema senhorial. A Villa do reino de Carlos Magno já antecipava a estrutura do senhorio do início da Idade Média – uma imensa propriedade autárquica composta de uma mansão senhorial e uma multidão de pequenos lotes camponeses. O tamanho destes domínios nobres ou clericais era muitas vezes bastante considerável – de uns 800 a 1.600 hectares de extensão. A produção agrícola permanecia extremamente baixa; mesmo proporções de 1:1 eram inteiramente desconhecidas, tão primitivos eram os métodos de cultivo. A própria reserva senhorial, o mansus endominicatus, poderia cobrir talvez um quarto da área total; o restante era geralmente cultivado por servi ou mancipia instalados em pequenos manses. Estes formavam o maior volume da força de trabalho rural dependente; embora sua denominação legal ainda fosse a da palavra romana para "escravo", sua condição na verdade estava agora mais próxima à do futuro "servo" medieval, uma mudança registrada semanticamente com o uso do termo servus no século VIII. O ergastulum desaparecera. Os mancipia carolíngios eram geralmente famílias ligadas ao solo, prestando obrigações em espécie e serviços a seus senhores: explorações que possivelmente eram na verdade ainda maiores que as do colonato galo-romano. As grandes propriedade carolíngias podiam também conter rendeiros camponeses livres (em manses ingenuiles), prestando obrigações e serviços, mas sem uma dependência servil; no entanto, estes eram bem menos comuns. Com mais freqüência, os mancipia seriam reforçados para serviço na casa senhorial, por trabalhadores contratados e autênticos escravos como bens móveis, o que ainda não havia desaparecido de maneira alguma. Dada a ambígua terminologia da época, é impossível fixar com alguma precisão o volume real da força de trabalho escravo na Europa Carolíngia; mas, em todo caso, já foi estimado em torno de 10 a 20 por cento da população rural. O sistema de Villa naturalmente não significava que a propriedade em terra se tivesse tornado exclusivamente aristocrática. Ainda subsistiam pequenas propriedades alodiais cultivadas por camponeses livres – pagenses ou medíocres – entra as grandes faixas de propriedades senhoriais. Sua quantidade relativa ainda está por ser determinada, embora esteja claro que nos primeiros anos de Carlos Magno, uma parte significativa da população camponesa permanecia acima da condição servil. Mas as relações rurais básicas de produção de uma nova era estavam daí em diante ficando cada vez mais manifestas.


Á época da morte de Carlos Magno, as instituições centrais do feudalismo já estavam presentes, sob o dossel de um império centralizado pseudo-romano. Na verdade, logo tornou-se claro que a rápida disseminação dos benefícios e a crescente possibilidade de hereditariedade tendiam a mina por baixo todo canhestro aparato do Estado carolíngio – cuja expansão ambiciosa jamais correspondera a sua reais capacidades de integração administrativas, dado o nível extremamente baixo das forças de produção nos séculos VIII e IX. A unidade interna do Império logo desmoronou, entre as guerras civis de sucessão e a crescente regionalização da aristocracia que o mantivera coeso. Uma precária divisão tripartite do Ocidente ocorreu. Ataques externos inesperados e selvagens, de todos os pontos cardeais, por mar e por terra, por invasores vikings, sarracenos e magiares, pulverizaram então todo o sistema para-imperial de governo cortesão que permanecia. Não existia um exército ou marinha permanente para resistir a esses ataques violentos; a cavalaria franca era lenta e desajeitada para se mobilizar, a flor ideológica da aristocracia carolíngia perecera nas guerras civis. A estrutura política centralizada legada por Carlos Magno desagregou-se. Por volta de 850, os benefícios eram hereditários virtualmente em todas as partes; por 870, os últimos missi dominici haviam desaparecido; pelo ano 880, os vassi dominici estavam sujeitos a potentados locais; por 890, os condes já haviam se tornado senhores regionais hereditários. Foi nas última décadas do século IX, quando bandos vikings e magiares assolavam o continente na Europa Ocidental, que o termo feudum (feudo) entrou em uso. Foi então também que toda a França, particularmente, ficou cheia de castelos e fortificações privados, erigidos por senhores rurais sem nenhuma permissão imperial, para resistir aos novos ataques bárbaros e consolidar o seu poder local. Essa paisagem cheia de castelos era ao mesmo tempo uma proteção e uma prisão para a população rural. Os camponeses, já vítimas de uma sujeição progressiva nos anos finais do reinado de Carlos Magno, marcados pela depressão e por guerras, agora eram levados a uma servidão generalizada. O enraizamento dos condes e dos senhores locais nas províncias, através do nascente sistema feudal, a consolidação de suas propriedades senhoriais e a suserania sobre o campesinato provaram ser a pedra fundamental do feudalismo, que lentamente foi solidificado por toda a Europa nos próximos duzentos anos.


TRADUÇÃO DE ALGUSN TERMOS EM LATIM USADOS AO LONGO DO TEXTO


Collatio lustralis – contribuição especial

Comitatenses – de comitivas

Limitanei – do limes

Bacaudae – Salteadores

Villae – Grandes propriedade Rurais

Manor – Domínio

Anachorensis – de forma anacoreta

Civitatis – cidadania

Vassi domici – vassalos do senhor

Missi domici – enviados do Senhor, do Rei

Mansus Indominicatus – reserva do Senhor

Mancipia – Servos

Ergastulum – Escravos, colonos

Manses ingenuiles – lote do servo