quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Cinema e História

Cinema e História
Marc Ferro


Coordenadas para uma pesquisa

            Entre cinema e história, as interferências são múltiplas, por exemplo: na confluência entre a História que se faz e a História compreendida como relação de nosso tempo, como explicação do devir das sociedades. Em todos esses pontos o cinema intervém.

Inicialmente como agente da história. Cronologicamente ele apareceu de início como instrumento do progresso científico: os trabalhos de Eadweard Muybridge, de Marey foram apresentados à Academia das Ciências. Hoje o cinema conserva essa função primeira, que foi estendida à medicina. A instituição militar também o utilizou desde o início, como, por exemplo, para identificar as armas do inimigo.

Paralelamente, desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários ou de ficção, que, desde sua origem, sob a aparência de representação, doutrinam ou glorificam. Na Inglaterra, mostram essencialmente a rainha, seu império, sua frota; na França, preferiram filmar as criações da burguesia ascedente: um trem, uma exposição, as instituições republicanas. Também na ficção o filme de propaganda aparece desde a origem: a favor ou contra Dreyfus, estigmatizando os boxers*1, etc.
*1Nome dado pelos ingleses aos membros de uma sociedade secreta chinesa que, em 1900, puseram em perigo as legações européias (N.T.)

Simultaneamente, desde que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele pô-lo a seu serviço: em relação a isso, as diferanças se situam ao nível da tomada de consciência, e não ao nível das ideologias, pois tanto no Ocidente como no Leste os dirigentes tiveram a mesma atitude. Painel confuso. As autoridades, sejam as representativas do Capital, dos Sovietes ou da Burocracia, desejam tornar submisso o cinema. Este, entretanto, pretende permancer autonômo, agindo como contra poder, um pouco à maneira da impressa americana ou canadense, e também como os escritores de todos os tempos procederam. Sem dúvida, esses cienastas, conscientemente ou não, estão cada a serviço de uma causa, de uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertamente as questões. Entretanto, isso não exclui o fato de que haja entre eles resistência e duros combates em defesa de suas próprias idéias. À sua maneira, o Jean Vigo de Zéro de Conduite, o René Clair de nós a liberdade, e Louis Malle de Lacombe Lucien, ou ainda o Alain Resnais de Stavisky*2, sem falar em quase todos os filmes de Godard, manifestam uma independência diante das correntes ideológicas dominantes, criando e propondo uma visão de mundo inédita, própria de cada um deles, o que vigorasamente suscita uma nova tomada de consciência, de tal forma que as instituições ideológicas instauradas (partidos políticos, Igrejas, etc..) entram em disputa e rejeitam tais obras, como se apenas essas instituições tivessem o direito de se expressar em nome de Deus, da nação ou do proletariado, e como se apenas elas dispusessem de outra legitimidade além daquela que elas próprias se outorgaram.

*2Sobre os títulos de filmes: sempre que possível, usou-se o título com que foram lançados no Brasil. Na ausência deste, foi mantido o título original, acompanhado eventualmente de tradução literal. (N.T.)

Essa capacidade do cinema não deixa de surpreender até mesmo as Igrejas mais bem instaladas em suas certezas dogmáticas que estão, de resto, frequentemente fundamentadas num saber subvertido: assim é que se explica, por exemplo, a aventura extraordinária de um número de cineastas soviéticos que puderam produzir filmes cuja significação e cuja fabricação escaparam ao apparatchiks  burocráticos – compostos por iletrados de cultura visual – que julgaram a ideologia d aobra por seus diálogos, seu roteiro, ou seja, por seus componentes escritos.

Hoje se vê uma nova etapa com a multiplicação das câmeras super 8: o cinema pode torna-se ainda mas ativo como agente de uma tomada de consciência social, com a condição de que a sociedade não seja somente um objeto de análise a mais, objeto que pode ser filmado brincando de bom selvagem para o benefício de um novo colonizador, o militante-cameraman. Outrora “objeto” para uma “vanguarda”, a sociedade pode de agora em diante encarregar-se de si mesma. Esse poderia ser o sentido de uma passagem dos filmes para os filmes militantes.

Medir ou avaliar a ação exercida pelo cinema é difícil. Certos efeitos, pelo menos, são distinguíveis. Por exemplo, sabe-se que O judeu Suss alcançou enorme sucesso na Alemanha, independentemente das ordens dadas por Goebbels; sabe-se também que logo após sua projeção, em Marselha, os judeus foram molestados. Outro exemplo: é possível observar que nos Estados Unidos os filmes antinazistas e os de exaltação da solidariedade patriótica só tiveram sucesso mediante duas condições – não glorificar a Resistência nos países ocupados nem a luta contra as instituições legais na Alemanha; não questionar a livre iniciativa de cada empresa sob o pretexto de coordenar melhor a produção de acordo com o apelo de Roosevelt.

Correlações e indicações desse tipo são raras. Um episódio recente, entretanto, testemunha a eficácia do fato cinematográfico: a apresentação, na ex-ORTF (Office de Radiodiffusion-Télévision Française), em 1975, de um filme letão sobre os campos de concentração na União Soviética, o que suscitou uma intervenção imediata do Partido Comunista Francês, medida que ele até então evitara.





Essa intervenção do cinema se exerce por meio de um certo número de modos de             ação que tornam eficaz, operatório. Sem dúvida essa capacidade está ligada, como se verá depois, à sociedade que produz o filme e àquela que o recebe, que o recepciona. Persite o fato de que além do ajustamento de dificuldades não cinematográficas (condições de produção, formas de comercilização, seleção de gêneros, referência a significados culturais, etc.) o cinema dispõe de certos número de modos de expressão que não são uma simples transcrição da escrita literária, mas que têm, sim, sua especificidade: os teóricos da escrita cinematográfica a estudam, de Jean Mitry a Bruce Morissete e Christian Metz.

Entretanto seria ilusório imaginar que a prática dessa linguagem cinematográfica é, ainda que inconcientemente, inocente. É fácil imaginar que um teórico do cinema, como Godard, por exemplo, seja mais mestre de sua escrita que um outro, e também de seu “estilo”: o longo travelling de Week-End restitui o tempo real por meio de diferentes temporalidades que são postas em cenas no filme para criar um “efeito”, para tornar insuportável a situação imaginada pelo autor. Da mesma forma, um procedimento aparentemente utilizado para exprimir duração, ou ainda uma outra figura (de estilo) transcrevendo um deslocamento no espaço, etc., pode, sem intenção do cineasta, revelar zonas ideológicas e sociais das quais ele não tinha necessariamente consciência, ou que ele acreditava ter rejeitado. É o caso, por exemplo, das “fusões encadeadas” de O judeu Suss, analisadas mais adiante. Da mesma forma, podem ser estudados os efeitos de montagem, como já fizeram Kulechov, Eisentein, etc., o funcionamento dos diferentes elementos da película sonorizada, e assim por diante. Chris Marker já abriu um via nesse sentido com Lettre de Sibérie; outros a sistematizam hoje analizando as n combinatórias no interior do filme.

3. É preciso dizer que a utilização e a prática de modos de escrita específica são, assim, armas de combate ligadas á sociedade que produz o filme, à sociedade que o recebe. Essa sociedade se trai inicialmente pela censura em todas as suas formas, compreendendo-se ai também a autosencura. O epílogo de O último homem, de Murnau, por exemplo, pode bem ser incluido nesse contexto: o produtor não queria


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Um comentário:

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