quinta-feira, 23 de abril de 2020

Da difícil arte de redigir um telegrama - De Jô Soares

DA DIFÍCIL ARTE DE REDIGIR UM TELEGRAMA
          Há uma história famosa a respeito de uns parentes que tinham que comunicar por telegrama, a uma senhora que estava viajando, o falecimento de uma irmã. Regiu a nota. Depois de alguns minutos mostrou o resultado do seu trabalho: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. TUA IRMÃ MORREU.” Todos leram e um dos tios fez o seguinte comentário:
– Eu acho que não está bom. Afinal de contas, vocês sabem que ela é cardíaca, está viajando e um telegrama assim pode ser um choque.
Todos concordaram, inclusive um outro primo afastado que era meio sovina e achou o telegrama muito longo:
– Depois, o preço que se paga por palavra, isso não é mais um telegrama, é um telegrana.
Ninguém riu do infame trocadilho, mesmo porque, velório não é lugar para gargalhadas. Foi a vez de o cunhado tentar redigir uma forma mais amena que não assustasse a senhora em passeio. Sentou-se e escreveu: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. SUA IRMÃ PASSANDO MUITO MAL.” Novamente o telegrama não foi aprovado. Um irmão psicólogo observou:
– Não sejamos infantis. Se ela está viajando pela Europa e recebe esta notícia, não vai acreditar na história de “passando muito mal”. Sobretudo com “volte correndo” no meio.
– Também concordo – falou o primo afastado sempre pensando no custo. Então o genro aproximou-se:
– Acho que tenho a forma ideal.
Pegou no bloco e rabiscou rapidamente: “INTERROMPA VOAGEM E VOLTE DEVAGAR. TUA IRMÃ PASSANDO MAIS OU MENOS.” Todos examinaram atentamente o telegrama. A filha reclamou:
– Vocês acham que mamãe é boba? Se a gente escrever que a titia está passando mais ou menos e que ela pode voltar devagar, ela vai adivinhar que todas estas precauções são pelo fato de ela ser cardíaca e que na realidade a irmã dela morreu!
– Concordo plenamente – disse o facultativo da família que era também sobrinho da senhora em questão. Resolveu, como médico, escrever o telegrama: “PACIENTE FORA DE PERIGO. VOLTE ASSIM QUE PUDER. PACIENTE TUA IRMÔ.
De todas as fórmulas até então apresentadas esta foi a que causou mais revolta.
– Que troço imbecil – gritou o netinho que passava pela sala no momento em que a mensagem era lida. Puseram o menino para fora da sala, mas no íntimo a família concordava com ele.
– Não, isso não. Se a gente manda dizer que ela está fora de perigo, para que vamos pedir que ela interrompa a viagem? – argumentou o tio.
– Também acho – responderam todos num coro de aprovação. O filho mais velho resolveu tentar. Pensou bem, ponderou, sentou-se, molhou a ponta do lápis na língua e caprichou: “SE POSSÍVEL VOLTE. TUA IRMÃ SAUDOSA. PASSANDO QUASE MAL. POR FAVOR ACREDITE. CUIDADO CORAÇÃO. VENHA LOGO. SAUDADES SURPRESA”.
– Realmente, esse bate todos os recordes! – disse uma nora professora. Em primeiro lugar, não é “se possível”, ela tem que voltar mesmo. Em segundo lugar, “saudosa” tem duplo sentido. Em terceiro lugar, ninguém passa “quase mal”. Ou passa mal ou bem. “Quase mal” e “quase bem” é a mesma coisa. “Por favor acredite” é um insulto à família toda. Ninguém aqui é mentiroso. Depois, “cuidado coração” não fica claro. Como telegrama não tem vírgula, ela pode pensar que a gente está dizendo “cuidado, coração”, já que a palavra coração também é usada como uma forma carinhosa de chamar os outros. Por exemplo: “oi coração, tudo bem?” E finalmente a palavra “surpresa” no telegrama chega a ser um requinte de crueldade. Qual é a surpresa que ele pode esperar?
– Ela pode pensar que a titia está esperando nenê – falou um sobrinho.
– Aos noventa anos de idade?
Abandonaram a ideia rapidamente. Seguiu-se um longo período de silêncio em que a família andava de lá para cá, pensando numa solução. Pela primeira vez estavam se dando conta de que não era tão fácil assim mandar um telegrama. Serviu-se o costumeiro cafezinho, enquanto cada qual do seu lado procurava uma maneira de escrever para a senhora em viagem sem que isto tivesse consequências desastrosas. De repente o irmão psicólogo explodiu num grito eurekiano de descoberta:
– Achei!
Escreveu febrilmente no papel. O telegrama passou de mão em mão e foi finalmente aprovado por todo mundo. Seu texto dizia: “SIGA VIAGEM. DIVIRTA-SE. TUA IRMÃ ESTÁ ÓTIMA.”
(JÔ SOARES. O Globo. 26/10/1975)

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