quarta-feira, 4 de maio de 2011

A Formação da Classe Operária e Projetos de Identidade Coletiva





A Formação da Classe Operária e Projetos de Identidade Coletiva





Cláudio BATALHA
In: Jorge FERREIRA e Lucilia de Almeida Neves DELGADO.




O Brasil Republicano. Vo.1. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2003
Da página 163 a 189

A formação da Classe operária: Um fenômeno econômico?

A formação da classe operária é freqüentemente pensada como um fenômeno puramente econômico associado ao surgimento da indústria. Desse modo, a classe operária no Brasil costuma ter sua origem associada ao surto de industrialização da década de 1880, quando o número de estabelecimentos industriais triplica, passando de pouco mais de 200 em 1881 para mais de 600 em 1889 (Prado Júnio, 1976, p.259)


Notas da Vera Pensada como fenômeno puramente econômico associado ao surgimento da indústria

Uma das críticas aos estudos calcados nessa perspectiva é que “tomavam a classe como um efeito quase mecânico da estrutura produtiva” (Petersen, 2001. P.13), deixando de considerar que a existência de trabalhadores fabris, em si, não assegura a existência de uma classe, o que pressupõe interesses coletivos constituídos na experiência comum. A formação de uma classe é portanto, um processo mais ou menos demorado, cujos resultados podem ser verificados na medida em que concepções, ações e instituições coletivas, de classe, tornaram-se uma realidade.

Há, igualmente, análises que, além do surgimento da indústria, associam a formação da classe operária à plena imposição do trabalho assalariado sem a concorrência do trabalho escravo. Nesse concepção a escravidão dificultaria e até entravaria o processo de formação do proletariado como classe. (Foot e Leonardi, 1982. P.109), partindo de uma suposta oposição entre trabalho escravo e trabalho livre, que, na prática, está longe de ser verificada, posto que, até mesmo em fábricas, as duas formas de trabalho podiam coexistir. Além de não considerar os escravos como sujeitos dotados de qualquer autonomia, essa produção sacralizou uma divisão por períodos da história do trabalho fundada exclusivamente em critérios econômicos e em marcos políticos (como 1889, 1930 e assim por diante) incapaz de perceber continuidades de uma período para outro, e sobretudo, desatenta para dinâmica específica do processo de formação da classe operária.

Em um caso como no outro – o crescimento industrial da década de 1880 ou a abolição da escravidão -, seriam determinações objetivas, independentes do modo como os homens e as mulheres inseridos no trabalho fabril viam a si próprios e as relações a que estavam submetidos, que configurariam a existência de uma classe operária. Evidentemente, isso não quer dizer que o processo de trabalho, o tipo de estabelecimento industrial, o grau de mecanização da produção, o número de trabalhadores por empresa fossem fatores irrelevantes na experiência dos trabalhadores. No entanto, isso não deve conduzir a estabelecer uma relação automática entre a forma assumida pelo trabalho e a existência da classe operária, que, mais que uma decorrência da forma de trabalho, é o modo como esses trabalhadores se percebem.

A composição da Classe Operária

A imagem associada à classe operária na Primeira República é de que esta foi “branca, fabril e masculina”. Cada um desses atributos falseia a realidade ao seu modo.

Falar de uma classe operária “branca”, composta em sua maioria de imigrantes europeus, é sem dúvida uma avaliação globalmente correta para os Estados de São Paulo e do Sul, mas desconsidera o peso do operariado “nacional”, com significativa participação de negros, mulatos no restante do país. Além disso, mesmo em estados com grande presença de imigrantes europeus, há situações particulares que contradizem a generalização de uma classe operária branca e estrangeira, caso das cidades do Rio Grande e, mais particularmente, de Pelotas, no Rio Grande do Sul (Loner, 2001, p.85).

Por outro lado, o caráter fabril do operariado foi grandemente exagerado nas fontes disponíveis, pois, de modo geral, os levantamentos públicos e privados do período tenderam a desconsiderar as manufaturas e oficinas, com pequeno número de operários e com trabalho manual. Ainda assim, em 1907, um levantamento realizado pelo Centro Industrial do Brasil no Rio de Janeiro – então a capital da República e ainda não superada por São Paulo como principal cidade industrial do país – apontava para o predomínio de médias empresas, que, segundo os critérios adotados nesse caso, eram as empresas que possuíam entre seis e 40 operários (Lobo, 1978, p.487-488). A despeito do caráter parcial desse levantamento e dos discutíveis critérios que consideravam como grandes empresas aquelas que tivessem mais de 40 operários, nele as pequenas e médias empresas correspondiam a 72% do total. Nesse quadro, o trabalho em indústrias modernas e mecanizadas, como as têxteis, que reuniam centenas e até milhares de operários, representava ainda uma experiência vivida por uma minoria, ainda que numericamente muito expressiva, dos trabalhadores.

Por fim, no que diz respeito à dimensão masculina da classe operária, de fato na Primeira República prevalecem os homens no trabalho manufatureiro e industrial. Entretanto, a mão-de-obra feminina foi muito significativa em ramos como têxtil e o de vestuário, chegando a ser majoritária em alguns lugares. De qualquer modo, o que é importante ressaltar é que o peso do trabalho feminino este sub-representado na face mais visível da classe operária – suas organizações, inclusive na organização de setores que contavam com presença significativa e até mesmo majoritária de mulheres, como nas associações de trabalhadores têxteis, elas estavam quase invariavelmente ausentes dos quadros diretores. As uniões de costureiras, surgidas em 1919, no Rio de Janeiro e na cidade de São Paulo, estão entre as poucas exceções de organizações sindicais compostas e dirigidas por trabalhadores e assim mesmo por se tratar de um setor exclusivamente feminino.

Imigração e Organização Operária

“É desnecessário ressaltar o imenso significado da imigração no surgimento de ideologias negadoras do sistema vigente no país e na adoção de modelos organizatórios pela classe operária.” (Fausto, 1977. P.32)

Durante muito tempo vigorou a tese de que havia uma correlação direta entre a maciça presença de imigrantes no Sudeste e no Sul do país e a militância do movimento operário e a difusão de certas ideologias, como fica evidente na citação acima. Na medida, porém, em que os estudos sobre a imigração se aprofundarem, essa relação passou a ser vista como crescente reserva. Afinal, o que esses estudos mostraram é que a imensa maioria dos imigrantes provinha do campo e, na maioria das vezes, não tinha qualquer experiência prévia de engajamento sindical ou político. Isso, evidentemente, não quer dizer que não existissem imigrantes com experiência prévia nos seus países de origem e cuja emigração se devia não a razões de ordem econômica, mas a problemas políticos. Particularmente entre os militantes operários em São Paulo, é possível encontrar vários casos eu se encaixam nesse perfil.

Paradoxalmente a composição étnica pode ser vista mais como um elemento de dissenso do que de consenso entre os trabalhadores. A origem rural da imensa maioria dos imigrantes, sem experiência sindical ou política anterior, à perspectiva da ascensão social e as diferenças culturais, tanto entre os diferentes grupos de imigrantes como destes com relação ao operariado nativo, que freqüentemente resultam em conflitos étnicos, são alguns fatores que dificultam a organização operária (Hall e Pinheiro, 1990) Entretanto, se não há dúvida quanto à existência desses fatores, é muito difícil avaliar o seu peso efetivo e em que momentos tendem a exercer maior influência. No caso dos conflitos étnicos, por exemplo – sobre o quais não faltam testemunhos, - resta saber em que medida se trata de um fenômeno derivado da xenofobia e de identidade nacionais antagônicas dentro do movimento operário ou se trata-se de um fenômeno conjuntural, relacionado, por exemplo, como momentos de maior disputa pelo mercado de trabalho.

Se o mito do imigrante militante, que traz da Europa experiência sindical e política, incapaz de se sustentar diante da evidência empírica que mostrava uma maioria de imigrantes provenientes de áreas rurais atrasadas nos seus países de origem, foi, em grande medida, abandonado nos estudos recentes, outros argumentos também contribuíram para enfraquecer esse tipo de interpretação. É lembrado, por exemplo, com pertinência, de que a própria opção pela emigração para fugir da miséria mostra a inexistência de uma crença na possibilidade de mudança da situação através da ação sindica ou política (Maram, 1977, p.189)

Nos países em que a imigração teve um peso fundamental, como no Brasil, entre os fatores que dificultam a organização operária, em primeiro lugar, costumam figurar as divisões étnicas e os conflitos que delas derivam. Além dos problemas que naturalmente decorrem da convivência de grupos étnicos que nem ao menos possuem uma língua comum, há problemas entre os grupos instalados há mais tempo nos centros urbanos brasileiros e os de chegada mais recente. Isso vale tanto para os conflitos entre brasileiros e imigrantes, como para os conflitos entre diferentes grupos étnicos de imigrantes.

As avaliações feitas pelos militantes da época tendem a confirmar a idéia de que a imigração podia, em muitos casos, ser uma fonte de dificuldade para a organização operária. Como escreveu o socialista italiano Alceste de Ambris: “[...] não se deve esquecer que a classe trabalhadora no Brasil é constituída de elementos díspares e variados em raça, língua, temperamento, cultura e hábitos, o que torna mais difícil o entendimento e a organização”.

Outra dimensão da “cultura” do imigrante freqüentemente apontada por observadores contemporâneos, e que reforça sua resistência a ação de classe, é a perspectiva de “fazer a América”, ou seja, de enriquecer e voltar ao país de origem. Mas a despeito do índice relativamente alto de retorno – 45% no caso do estado de São Paulo -, como aponta Michael Hall, há pouca evidência de que os que retornam tivessem efetivamente conseguido alcançar o objetivo de enriquecer (Hall, 1975, p.400) por outro lado, se a perspectiva de enriquecimento rápido podia estar presente no imigrante pouco depois de sua chegada, é pouco provável que com o passar dos anos, e diante das dificuldades enfrentadas, essa crença se mantivesse, como pertinentemente sugeriu Sheldon Maram ao analisar a participação de operários estrangeiros nos movimentos grevistas de 1817-1920 (Maram, 1977. P 192)

Se o conflitos étnicos são freqüentes, quase sempre assumem o caráter de uma oposição entre setores organizados e não organizados de proletariado. Grevistas contra não-grevistas ou fura greves. Trabalhadores empregados e protegidos por sua organização sindical contra recém chegados desvinculados de uma organização profissional. São raros os conflitos envolvendo dos dois lados categorias organizadas que assumem uma dimensão étnica. Um dos poucos casos conhecidos foi o conflito violento que se seguiu a eleição para a diretoria da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, no Rio de Janeiro em 1908, de uma chapa que contava com a presença de imigrantes, enquanto a maioria da categoria era composta por negros e mulatos, que até então dominavam as diretorias (Maram, 1979, p.31) Mesmo nesse caso, porém, é discutível até que ponto a composição étnica de cada um dos grupos explica o conflito, posto que não faltam outros exemplos de confrontos físicos violentos entre facções dos sindicatos portuários do Rio de Janeiro sem que a diferença étnica estivesse presente. Pode-se até falar de uma cultura da violência nas associações portuárias tanto no Rio de Janeiro como em Santos, que não tem qualquer ligação direta com a oposição entre grupos étnicos (Gitahy, 1992, p. 122)

Por outro lado, se há uma série de categorias profissionais que são dominadas por determinados grupos étnicos, o que freqüentemente provoca o afastamento dos trabalhadores de outras etnias das organizações profissionais controladas pelo grupo majoritário, a organização dos trabalhadores com base na nacionalidade é relativamente pouco significativa. Assim, Michael Hall (1975, p. 398) cita o exemplo, entre os chapeleiros de São Paulo na década de 1890, dos trabalhadores brasileiros, alemães, espanhóis e portugueses que se sentiam marginalizados pelos italianos, que controlavam a associação da categoria, onde o italiano prevalecia como língua até nos estatutos. Parece provável, portanto, que grupos nacionais minoritários enfrentassem algum grau de dificuldade em categorias como os vidreiros da Água Branca, em São Paulo, de maioria francesa, os trabalhadores de cafés, bares e restaurantes no Rio de Janeiro, de maioria espanhola, ou a construção civil em Santos, de maioria portuguesa. Nesse sentido, seria lógico supor que, se a identidade étnica fosse um fator fundamental em meio ao operariado organizado, proliferariam associações operárias organizadas exclusivamente com base na nacionalidade ou na origem étnica, mas os exemplos nesse sentido são pouco numerosos. No Rio de Janeiro existiu, nos primeiros anos do século XX, uma Liga Operária Italiana que desapareceu depois do Primeiro Congresso Operário Brasileiro de 1906. Já em São Paulo, a mais célebre associação estrangeira foi a associação dos trabalhadores alemães. Allgemeiner Deutscher Arbeiterverein, de orientação Social Democrata, ativa da década de 1890 até pelo menos a de 1920, sem, no entanto, jamais ter desempenhado um papel de peso no conjunto do movimento operário.

No início de 1913 o movimento operário chegou a organizar uma campanha contra a emigração para o Brasil, decidindo, em reuniões realizadas no Rio de Janeiro, em Santos e em São Paulo, pelo envio de representantes à Europa a fim de fazer propaganda. Essa campanha porém, longe de representar uma reação contra os imigrantes, visava fazer conhecer aos candidatos potenciais à emigração, assim como aos seus governos, as condições desfavoráveis que encontrariam no Brasil. Tratava-se da resposta dada pelo movimento às expulsões de operários imigrantes que participaram das greves em Santos em 1912 e à ampliação dos dispositivos da Lei de Expulsão de Estrangeiros de 1907, aprovada pelo Congresso Nacional em 1913 (Gitahy, 1922, p.69-71)

O que mais tem mudado com as análises mais recentes é a tendência a matizar a avaliação – que passou a vigorar como reação ao automatismo da relação entre imigração e militância – de que muitas vezes a imigração continha em si elementos capazes de dificultar a organização operária. Todavia, mesmo levando em conta diferenças étnicas, religiosas, regionais e lingüísticas que podem contribuir para a divisão do operariado, essa tendência busca não as superestimar. As dificuldades de comunicação entre imigrantes provenientes de diferentes regiões da Itália, por exemplo, são menos significativas entre imigrantes adultos, homens que prestaram serviço militar antes de emigrarem, onde tiveram no italiano a língua comum (Biondi, 2002) do que podem parecer em um primeiro momento. Entretanto, a experiência comum entre originários de regiões diversas ao longo do serviço militar não significou necessariamente que a identidade nacional suplantaria no curto prazo as identidades regionais. Uma demonstração disso é que até 1896 nas cidades de São Paulo, ao passo que existiam organizações de alemães, franceses, espanhóis, portugueses, não existia uma organização comum dos italianos, mas uma série de associações regionais de meridionais, calabreses, vênetos e etc.. (Trento, 1990. P.41).

A conclusão a ser tirada da produção que relaciona a imigração com formação da classe operária no Brasil é o abandono por completo das análises fundadas em determinações estruturais, que podiam conduzir a ver necessariamente em todo imigrante um anarquista, ou ao contrário, percebê-lo como exclusivamente movido pelo interesse individual de enriquecimento, o que tornaria implausível sua participação em movimentos coletivos. Se existiam dificuldades objetivas para a organização coletiva dos imigrantes e das classes trabalhadoras de modo geral, não faltaram exemplos, ao longo da história da Primeiro República, de momentos em que essas dificuldades foram suplantadas.

A Classe como Manifestação Histórica

Os segmentos da classe operária que mais facilmente se organizaram, em muitos casos desde o século XIX, foram os trabalhadores qualificados, detentores de um ofício. Tipógrafos, alfaiates, sapateiros, pedreiros, marceneiros, padeiros estavam a frente da mobilização operária de Belém a Porto Alegre. Esses trabalhadores geralmente não eram mais artesãos independentes, mas assalariados submetidos a um patrão; no entanto, detinham um saber de ofício que lhes conferia um certo poder de barganhar nas negociações por melhores salários ou condições de trabalho. Além disso, estavam mais protegidos do infortúnio que os trabalhadores desqualificados, por serem mais bem pagos e possuírem maior facilidade de colocação no mercado de trabalho, mas também por contarem com mecanismos de proteção contra doenças e mesmo o eventual desemprego, quer através de sociedades mutualistas de ofício, quer através dos seus sindicatos. Essas características não eram um exclusividade do caso brasileiro, pois, mesmo em países europeus industrializados, até 1914, a base do movimento operário era constituída pelos trabalhadores qualificados, e a maioria dos trabalhadores, isto é, os desqualificados, estava fora dos sindicatos (Geary, 1984. P. 16-17)

A despeito da situação vantajosa dos trabalhadores qualificados, se comparados aos sem qualificação, as transformações na produção capitalista e no processo de trabalho ameaçavam essa situação. Em muitos setores esses trabalhadores de ofício viam sua importância decrescer com a introdução de novas técnicas de produção, de mecanização e de mão-de-obra mais barata, como o trabalho feminino. A nostalgia de um passado idealizado do artesão e o lamento da arte (saber de ofício) perdida marcam o discurso dos porta-vozes desses trabalhadores.

Em janeiro de 1913, no Rio de Janeiro, o socialista Mariano Garcia, que fora cigarreiro, ao comentar sobre a situação de sua categoria e a perspectiva de que a Sociedade Beneficente dos Cigarreiros viesse a desaparecer por falta de gente disposta a assumir a diretoria, atribuía as dificuldades à mecanização da produção e à introdução do trabalho de mulheres, que haviam acarretado a queda de salários e o afastamento de antigos cigarreiros.

Como resposta ao processo de desqualificação, mecanismos de controle do aprendizado chegaram a ser propostos por sociedades operárias, como a União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo, que, em 1905, propôs a criação de uma Escola do Livro com esse intuito (Vitorino, 2000, p.145-146).

Sob a liderança de trabalhadores qualificados de ofício, o movimento operário foi moldado pelo discurso e pelas formas de organização desses trabalhadores. Até 1917, em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, os trabalhadores fabris tiveram pouco peso na condução do movimento operário, a despeito de ser o setor que mais crescia e cujas empresas reuniam o maior número de operários. O próprio predomínio, até a segunda metade da década de 1910, de organizações sindicais fundadas sobre o ofício em detrimento das organizações baseadas no ramo de atividade ou no setor industrial dificultava uma maior participação de operários fabris nos movimentos coletivos. Os vários ofícios da construção civil foram reunidos no Rio de Janeiro, em 1915, pela União Geral da Construção Civil, que logo se desarticulou, voltando a organizar-se em 1917. Em São Paulo, a união dos ofícios desse setor ocorre em 1919 com a formação da Liga Operária da Construção Civil. Fenômeno semelhante se produziu entre os metalúrgicos, que só foram unificados no Rio de Janeiro em 1917, na União dos Operários Metalúrgicos. A principal exceção a essa lógica é o caso dos operários têxteis, cujas organizações desde os primeiros anos do século XX foram formadas com base na indústria, mas tinham inúmeras dificuldades para mobilizar o grande número de trabalhadores do setor.

No entanto, sem em grande medida o movimento operário das primeiras décadas do século XX é moldado pelos trabalhadores qualificados de ofício, isso em absoluto não significa endossar a teoria de que doutrinas como o anarquismo seriam características de trabalhadores ainda não plenamente inseridos no trabalho industrial. Esse tipo de visão é marcada por um viés ideológico que pressupõe que trabalhadores industrializados deveriam adotar como ideário um socialismo de cunho marxista. Implica, portanto, uma valorização desse último e uma percepção negativa do anarquismo. Entretanto, tanto o socialismo com o anarquismo eram doutrinas presentes nesse movimento operário. O que levou o anarquismo a suplantar o socialismo na preferência de muitos militantes operários deve-se menos às características do tipo de trabalhador que militava nesse movimento e muito mais às condições políticas do Brasil da Primeira República. Pois é difícil supor que um socialismo em grande parte voltado para mudanças através do processo eleitoral, que distingue o Socialismo da Segunda Internacional, pudesse florescer em um quadro político em que o espaço para a participação eleitoral dos trabalhadores fosse tão limitado quanto o caso brasileiro. Entretanto, como veremos adiante, essa aplicação está longe de ser satisfatória.

A organização dos trabalhadores, fossem eles qualificados ou não, é um traço marcante do Brasil da Primeira República. O volume de associações criadas tendia a ser particularmente visível em momentos de ascenso do movimento operário, quando condições econômicas favoráveis conferiam um maior poder de barganha ao operariado e os movimentos grevistas tinham maiores chances de sucesso. Assim, de 1917 a 1919, nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, foram criadas mais organizações operárias do que em qualquer outro período de tempo equivalente. Essa tendência pode ser lida como um indicativo do caráter efêmero das sociedades operárias e de sua instabilidade, mas também pode ser interpretada como um demonstração de que, a despeito de condições adversas (recessão econômica, repressão e etc.) que podiam conduzir ao fechamento das associações, a cada conjuntura mais favorável, o operariado esta propenso a reconstituir e ampliar sua organização.

Os momentos de mobilização em várias cidades brasileiras, como as greves de 1902-1903, 1906-1907, 1917-1919, ou o movimento contra a carestia de vida de 1913, apontam para uma outra questão: a de que esses momentos ímpares da ação coletiva envolviam muito mais gente do que o número restrito de trabalhadores – sobretudo qualificados – pertencentes às sociedades operárias. São nesses processos que a classe como um realidade histórica aparece na medida em que os interesses coletivos se sobrepõem aos interesses individuais e corporativos. É então que podemos falar de formação de classe operária, não como resultado mecânico da existência da indústria ou da abolição da escravidão, mas como um processo conflituoso, marcado por avanços e recuos, pelo fazer-se da classe, que surge na organização, na ação coletiva, em toda a manifestação que afirma seu caráter de classe.

Qual República?

A grande esperança suscitada nos meios organizados do operariado pelo advento da República em 1889, recebida como marco inaugural de uma nova era de direito políticos e sociais, pode ser comprovada pela passagem do editorial da Voz do Povo, jornal que tinha como subtítulo “órgão operário dos Estados Unidos do Brasil”.

Novos horizontes se abrem ao povo brasileiro, com o estabelecimento da forma republicana de governo no país.
A democracia, que na sua acepção pura [...] é o regime de igualdade dos direitos como dos deveres, veio enfim nivelar todas as classes na partilha dos bens sociais, libertando-as do privilégio de umas sobre as outras.


O proletariado nacional, que até hoje foi apenas uma força anônima servindo de base a todas as ambições, por inconfessáveis que fossem, passou destarte a ser uma força preponderante na sociedade, um elemento de prosperidade de riqueza e de progresso.
Sob a base da ordem, representada pelos poderes que se constituíam, o industrialismo tomará ingente impulso, valorizando a entidade moral e social do operário, que é modestamente o grande fator da civilização e da grandeza do povo.

A expectativa positiva como o novo regime foi seguida de uma igualmente grande desilusão, na medida em que este se mostrou incapaz de atender aos anseios da classe operária. Essa desilusão é um tema que aparece repetidas vezes na imprensa operária nos anos que se seguiram ao 15 de novembro de 1889. Muitos dos futuros socialistas, como o gaúcho Francisco Xavier da Costa (Schmidt, 2002, p 365-367), bem como futuros anarquistas, como os paulistas Benjamin Mota e Edgard Leuenroth (Toledo, 1998, p.102) chegaram a essas concepções à medida que viram a República fechar as portas a toda esperança de transformação efetiva.

Essa desilusão propiciou três tipos de resposta de parte do movimento operário. A primeira foi a da busca de obtenção de direitos sociais, sem questionamento do sistema político, sustentada pelo positivismo, cooperativistas e toda uma série de manifestações do sindicalismo reformista. Como deixa claro o ofício circular de outubro de 1909 do Círculo dos Operários da União, com sede no Rio de Janeiro, que proclamava entre seus objetivos: “Pugnar dentro da mais absoluta ordem e do respeito à lei, perante os poderes constituídos do país, pelos direitos e interesses legítimos da classe, outorgados pela libérrima Constituição de 24 de fevereiro de 1891, tão descuidados até hoje...”

A segunda resposta foi aquela que propunha a conquista de direitos sociais aliada a direitos políticos, visando à mudança do sistema pela participação no processo político-eleitoral, posição dos socialistas e dos setores mais politizados do sindicalismo reformista.

O programa do Partido Operário Brasileiro de 1893 justifica seu lançamento com base no argumento de que “a emancipação econômica da classe trabalhadora é inseparável da sua emancipação política”. E propunha em seu programa a eleição direta para todos os cargos eletivos pelo sufrágio universal e a possibilidade de revogação dos mandatos, assim como a extensão do direito de voto a todos os indivíduos que atingissem o “estado civil” (21 anos). Cinco anos mais tarde, o socialista Vicente de Souza escreveria:

O socialismo, no Brasil, perante a forma republicana, já agora iludida e falseada em todas as relações que serviram de base à propaganda e às promessas, recolhe em seu seio a grande multidão dos que esperam ainda a verdade do republicanismo radical.
Não há, não pode haver antagonismo entre as duas denominações pois que socialismo, em sua inteira e exata acepção, é a forma social e política que realiza todas as promessas, todas as aspirações e todas as soluções do problema republicano.

Na concepção de Vicente de Souza fica evidente que apenas o socialismo seria capaz de levar a cabo as promessas da República, Torna-se comum aos socialistas brasileiros, a partir da década de 1890, a transposição para a República do mesmo raciocínio já empregado pelo movimento socialista com respeito à Revolução Francesa, o de que uma e outra seriam processos iniciados, porém deixados incompletos, cabendo, portanto, aos socialistas levá-los adiante.

Finalmente, a posição de negação da política institucional, depositando na ação direta a forma de pressão necessária para a obtenção de conquistas defendidas por sindicalistas revolucionários e anarquistas. Apesar das implicações não inteiramente iguais em um caso e no outro da noção de ação direta, para ambos a ação direta passava pela rejeição de intermediários, de mediadores, fossem esses mediadores os partidos políticos, indivíduos ou representantes do governo.
No Congresso Operário Brasileiro, realizado em abril de 1906 na capital da República, em cujas resoluções prevaleceu uma orientação sindicalista revolucionária, a resolução que respondia ao tema 1, em que era perguntado se as sociedades operárias deveriam aderir a uma “política de partido” ou conservar a neutralidade, dizia:

Considerando que o operariado se acha extremamente dividido pelas suas opiniões políticas e religiosas; que a única base sólida de acordo e de ação são os interesses econômicos comuns a toda a classe operária, os de mais clara e pronta compreensão; que todos os trabalhadores, ensinados pela experiência e desiludidos da salvação vinda de fora da sua vontade e ação, reconhecem a necessidade iniludível da ação econômica direta de pressão e resistência, sem a qual, ainda para mais legalitários, não há lei que valha; O Congresso Operário aconselha o proletariado a organizar-se em sociedades resistência econômica, agrupamento essencial, sem abandonar a defesa pela ação direta dos rudimentares direitos políticos de que necessitam as organizações econômicas, a pôr fora do sindicato a luta política especial de um partido e as rivalidades que resultariam da adoção, pela associação de resistência, de uma doutrina política ou religiosa, ou de um programa eleitoral. (Pinheiro e Hall, 1979, p.46-47)

Resoluções dentro do mesmo espírito foram aprovadas nos congressos operários brasileiros de 1913 e 1920, e inclusive, a maioria dos anarquistas que atuavam no movimento sindical passa a defender essa postura, encarando a opção pelo ideário anarquista como uma escolha individual fora do sindicato. Ainda em 1906, o jornal anarquista como uma escolha individual fora do sindicato. Ainda em 1906, o jornal anarquista gaúcho A Luta reforça essa postura dentro dos sindicatos.

Como temos procurado explicar, sempre que tratamos de sindicalismo, das associações operárias desse gênero, devem ser excluídas todas as idéias políticas, religiosas ou filosóficas, e apenas prevalecer a de uma conquista econômica pela ação direta dos indivíduos solidários e conscientes.

A Luta por Direitos Sociais

Como resposta à exclusão social e política que não terminou com o advento da República, parte substancial dos setores organizados da classe operária priorizou a luta por direitos sociais. Mas as razões que conduzem a eleger os direitos sociais, muitas vezes em separado e em prejuízo da luta por direitos políticos, variam consideravelmente de corrente para corrente do movimento operário. Destacam-se, entre as correntes que por razões opostas voltam-se para a luta por direitos sociais, tanto as circunscritas e limitadas manifestações de positivismo no meio operário como a face mais visível do sindicalismo na Primeira República, que foi a corrente sindicalista revolucionária.

A concepção comtiana da incorporação do operariado à sociedade moderna, largamente divulgada pelos positivistas brasileiros, remete a direitos sociais, e não a direitos políticos (Carvalho, 1987, p.54) Há, entretanto, toda uma série de projetos de origens diversas, como a doutrina social da Igreja e o corporativismo, que, sem uma relação direta com o positivismo preservam essa mesma concepção.

A posição positivista no meio operário foi representada especialmente pelo já mencionado Círculo dos Operários da União – Culto do Trabalho, organização que atuou, sobretudo, na então capital da República com ramificações pelos estados vizinhos entre 1909 e a década de 1920. Um dos melhores exemplos das posições adotadas por essa organização é a carta endereçada aos organizadores do IV Congresso Operário Brasileiro que publicou no diário carioca A Época em 24 de Outubro de 1912. O Círculo através de seu vice-presidente Abílio de Santana agradeceu, porém recusou o convite para participar do congresso alegando dever aguardar o trâmite dos projetos “sujeitos às sábias, doutas e criteriosas deliberações do Poder Legislativo”, bem como “esperar as resoluções do Exmo. Sr. Presidente da República, pelos esclarecidos órgãos do seu governo” com respeito às solicitações que o Círculo encaminhara pelas reformas do “atual regime do trabalho”. O texto do Círculo também mostra “plena convicção de que a másculação do governo, ou antes, a elevação de vistas dos poderes públicos” se eficaz perante os patrões, pois uma legislação para os operários da União teria reflexos sobre os trabalhadores do setor privado (Confederação Brasileira do Trabalho, 1913. P178-179). Dentro dessa perspectiva, qualquer forma de mobilização ou pressão era vista como prejudicial à obtenção de direitos pleiteados. Os integrantes do Círculo eram movidos pela crença de que os parlamentares e o governo não poderiam deixar de tomar uma atitude diante da justeza das reivindicações apresentadas. Prevalece, portanto nessa organização uma perspectiva que descarta a luta política e o conflito. Nesse sentido, o Círculo representa um tipo bastante peculiar de organizações de trabalhadores, agindo muito mais como um grupo de pressão moral do como um sindicato. Já na circular do Círculo, anteriormente citada, enviada às autoridades em outubro de 1909, na qual anuncia estar em funcionamento e solicita apoio “moral e cívico”, inclui entre seus fins:


Cooperar e colaborar com o Governo nas medidas que tenham por fixo melhorar as condições de vida das classes trabalhadoras, de que somos parte, promovendo assim a confraternização das classes produtoras em geral, e feliz consórcio entre o Capital e o Trabalho pelas formas enunciadas no regime da arbitragem, de modo que cesse de vez, na espécie humana, a luta de castas que entorpece o surto da unidade de vistas altruísticas [...].

Nesse caso, não creio que conceitos como os de “estadania” (Carvalho, 1987, p. 54-55), que foi forjado para designar a posição de correntes operárias que se deixavam cooptar pelo Estado, contribuíam para a compreensão dessas posições. A separação entre direitos sociais e direitos políticos que norteia a concepção do Círculo não é um traço exclusivo da cultura ibérica nem tampouco das características específicas da cidade do Rio de Janeiro, que servem de fundamento para o conceito (Carvalho, 1987, p. 149-152), pois não faltam exemplos semelhantes em outros contextos. Operar com modelos ideais de cidadania não permite ver que o que ele, Círculo, julga existir. Não há capitulação diante do Estado, mas negociação com este no terreno moral escolhido pelos partidários do Culto do Trabalho. O fato desse projeto não ter obtido sucesso não deve servir de pretexto para sua desqualificação pela posteridade.

Partindo de uma perspectiva completamente diversa, mas guardando em comum com as posições anteriormente descritas a separação entre direitos políticos e direitos sociais, situava-se a corrente de maior visibilidade do sindicalismo brasileiro: o sindicalismo revolucionário. Essa corrente que freqüentemente foi designada por diversos autores como “anarco-sindicalistas”, não foi uma mera ramificação do anarquismo, mas uma corrente autônoma, fundamentada em uma doutrina própria, que conservava tanto elementos do anarquismo, como a ação direta e o federalismo, como do marxismo, a exemplo da luta de classes (Toledo, 2002, p.78) Entretanto, a confusão com o anarquismo em parte se justifica na medida em que vários dos dirigentes do movimento operário eram anarquistas que defendiam, como vimos, a adoção de um programa sindicalista revolucionário pelas organizações de cunho sindical. Essa corrente, que dominou os três congressos operários brasileiros realizados durante a Primeira República, recusava a luta política não por conformismo com a ordem vigente, mas por não ver nas práticas eleitorais e parlamentares a possibilidade de transformar a sociedade. É através da luta econômico-sindical em torno das condições e da remuneração do trabalho, e adotando por método a ação direta, particularmente expressa em movimentos grevistas, que o sindicalismo revolucionário pretendia alcançar a emancipação dos trabalhadores.

Em 1904, Elísio de Carvalho escreveu no jornal anarquista O Amigo do Povo:

A ação direta, como meio revolucionário e de emancipação econômica, é a tática mais consentânea com os princípios positivos do anarquismo insurrecional.
Esta nova forma de ação revolucionária e libertadora é o método de luta mais eficaz que possui o proletariado contra os seus opressores e os seus exploradores [...]
A ação direta, consciente e ativa, manifestada em todos os terrenos, traz ainda consigo a bancarrota do reformismo e a desmoralização do parlamentarismo, elimina essa corja de charlatães (sic) que vivem da miséria do operariado ignorante, é a morte de todos os partidos políticos que têm por campo de luta o parlamento, e como arma de combate o sufrágio universal, as duas grosseiras ilusões que ainda alimentam o cérebro domesticado dos ineptos.

Ao contrário de outras correntes que buscavam a garantia de direitos sociais através da legislação, o sindicalismo revolucionário acreditava unicamente na capacidade de mobilização dos trabalhadores para garantir que os patrões mantivessem as conquistas obtidas em greves.

A Cidadania Operária

O termo cidadania foi de tal modo vulgarizado que pode ser utilizado nas mais diversas situações. Sindicatos, empresas, governos empregam o termo conferindo-lhe os mais diversos significados, o que tem conduzido muitos a encará-lo com crescente ceticismo e até contrapô-lo a uma perspectiva classista (Welmowicki, 1998)

As correntes políticas do movimento operário na Primeira República, os socialistas em particular, propunham em seus programas não apenas direitos sociais, mas também a ampliação dos direitos políticos, por exemplo, através da extensão do direito de voto. Nesse sentido, podemos dizer que lutavam pela cidadania, ainda que o termo não fosse usual no vocabulário da época. Portanto, seu uso requer cuidado e, sobretudo, deve vir acompanhado de uma explicação sobre seu significado dentro de cada contexto.

A resposta encontrada pelas classes trabalhadoras durante a Primeira República a um sistema que levava a sua exclusão social e política está em parte no mundo associativo criado. O associativismo nesse período das classes trabalhadoras em geral, e da classe operária em particular, se expressa através de uma rede extremamente diversificada e rica de associações. Sociedades recreativas, carnavalescas, dançantes, esportivas, conviviam lado a lado com sociedade mutualistas, culturais e educativas e, também, com sociedades profissionais, classistas e políticas. Em que medida toda e qualquer sociedade composta por trabalhadores, independentemente de seus objetivos, expressa identidade de classe ainda é objeto de controvérsia. Há aqueles que associam a identidade operária a formas de ação coletivas e associações que reivindiquem seu caráter de classe (Batalha, 1991-1992), ao passo que outros vêem em toda sociedade composta por trabalhadores, inclusive clubes de futebol, uma forma de identidade classista (Pereira, 2000, p.255-280).

Todavia, se o mundo associativo possibilitava um espaço de participação política, que em grande medida não dependia das normas legais que regiam a política formal, constituindo uma espécie de contra-sociedade, governada por outros valores, a capacidade e mesmo a vontade por parte dessas sociedades de buscar espaços na política formal eram relativamente limitadas. Coube às organizações de cunho eminentemente político, os partidos operários, desempenham esse papel.

Desde a última década do século XIX, a maioria dos programas políticos de organizações que, sob a denominação de partidos operários ou socialistas, tinham como objetivo a defesa dos interesses da classe trabalhadora passava pela ampliação dos direitos políticos, em particular propondo reformas do sistema eleitoral. No sistema vigente votavam apenas os homens, brasileiros, maiores de 21 anos, alfabetizados e alistados como eleitores. Todo o processo eleitoral era controlado pelo partido situacionista, propiciando fraudes, e não havia voto secreto, deixando os eleitores à mercê de todo tipo de pressão. Assim, durante a Primeira República, as eleições de candidatos operários foram fenômenos raros, limitados a uns poucos casos: como o do tipógrafo João Ezequiel, eleito deputado estadual, em 1913, em Pernambuco, graças a sua inclusão na lista oficial do governador General Dantas Barreto; e, em 1928, a eleição dos comunistas Minervino de Oliveira e Octávio Brandão para o Conselho Municipal do Distrito Federal pelo Bloco Operário e Camponês. As características do funcionamento dos legislativos, com garantia de ampla maioria para o situacionismo, tornavam as eleições de eventuais candidatos operários muito mais um feito propagandístico do que uma possibilidade para mudanças significativas no sistema político.

Aliás, será precisamente a oportunidade para a propaganda política que as eleições propiciavam que o Partido Comunista – Seção Brasileira da Internacional Comunista usava, nos anos 20, como justificativa para participar do processo.

Em artigo em fevereiro de 1928, publicado no jornal A Esquerda, assinado por P. Lavinsky (que deve ser um pseudônimo), essa posição é explicitada:

[...] só nos devem encher de satisfação as novas diretivas que vem adotando o movimento proletário entre nós, arregimentando suas forças para futuras batalhas eleitorais, que inaugurarão uma fase na política, fazendo com que o proletariado entre em cena, independentemente dos chorrilhos políticos da burguesia, manifestando sua vontade firme de afirmar-se numa classe forte e politicamente capaz de escolher seus mais dedicados membros para as investiduras legislativas.
Será um dos muitos meios de alargar sua luta geral contra os exploradores, criando uma nova frente de combate e preparando com ela novas bases para um mais largo movimento de massas capaz de derrubar definitivamente os seus exploradores e levá-los à definitiva vitória contra os seus inimigos seculares.

O artigo termina conclamando os operários ao alistamento eleitoral.

A posição comunista na questão eleitoral acaba sendo um meio-termo entre aquela dos socialistas e das demais correntes reformistas que advogam a participação eleitoral, e aquela de rejeição dos procedimentos e instituições político-parlamentares, que marcam as atuações de anarquistas e sindicalistas revolucionários. Como os primeiros, os comunistas defendem a participação no processo eleitoral, não compartilhando, porém, de esperança de que a via político-parlamentar possibilite mudanças. Assim, como os últimos, é na revolução, e não na via parlamentar, que concebem a única possibilidade de ruptura, entretanto, não deixam de ver a luta eleitoral como mais um espaço de exercício da luta política.

Voltando ao tema da exclusão política da classe operária e das respostas a essa situação, o “Programa mínimo” do Partido Socialista Brasileiro, que consta do seu “Manifesto”, de 1902, propunha, entre outras medidas, os seguintes pontos:

3- Trabalho permanente de qualificação eleitoral, e demais reformas que facilitem a ação eleitoral [...] 8- Reconhecimento do direito de cidadãos a todos os estrangeiros que tenham um ano de residência no país [...] 10- Revogabilidade dos representantes eleitos no caso de não cumprirem o mandato popular (...) 19- Referendum político e econômico, por voto direto, de iniciativa popular [...] 22- Igualdade política e jurídica para os dois sexos. 23- Voto político para todos os cidadãos, como também para as mulheres, desde a idade de 18 anos.

Afora a aparente falta de lógica na ordem desses objetivos políticos, que se mesclam com outros objetivos políticos e econômicos no “programa mínimo”, chama a atenção o fato de que, passados 100 anos, alguns pontos citados continuam a fazer parte do programa da esquerda, como o referendum popular. Outros, como a revogabilidade dos mandatos, estão ainda longe de figurarem um horizonte próximo.

Nesse “Manifesto” do PSB, partido em grande medida composto por trabalhadores, aparece uma concepção de cidadania que não apenas garante melhores condições de trabalho, protegendo o trabalhador através de mecanismos legais, propondo a promoção de uma maior justiça social, sobretudo através de medidas fiscais, como vincula de forma indissociável direitos sociais a direitos políticos, sustentando que a obtenção de uns depende dos outros.

Se sob o olhar de hoje o diagnóstico da situação e as propostas contidas no Manifesto do PSB parecem justas, a pergunta inevitável é: por que não houve um partido socialista operário de peso no Brasil?

Para não falarmos de exemplos mais distantes da realidade brasileira, tanto o Chile como a Argentina, constituíram a partir de certo momento partidos socialistas unificados (a despeito de divisões esporádicas) de maior ou menor peso e estabilidade, ao passo que no Brasil da Primeira República o que houve foi uma sucessão de agremiações políticas operárias de curta duração, freqüentemente concorrentes, e de implantação puramente local, ou quando muito estadual. É verdade que o caso do Chile, tem algumas características que dificultam a comparação, como uma classe operária em que a imigração teve pouco peso, portanto mais homogênea, em um sistema político que, a despeito de fraudes e manipulações, contava com o sufrágio masculino e o voto secreto desde á década de 1880 (DeShazo, 1983. P. 43-117-119). No caso argentino, porém, a imigração teve um papel ainda mais significativo que no Brasil, tendo sido o principal destino na América Latina para a emigração européia. Assim como a cidade de São Paulo das primeiras décadas do século XX (que estava longe de constituir a regra no caso brasileiro), a maioria da população economicamente ativa de Buenos Aires, entre 1885 e 1914, era composta por estrangeiros (Coggiola e Bilsky, 1999, p.15-27, n.7) No que tange ao sistema político, a lei eleitoral de 1912, sob a presidência de Saénz Peña, tornou o voto universal e obrigatório para os homens argentinos maiores de 18 anos, o que a curto prazo não inclui o operariado majoritariamente estrangeiro, mas que até o fim dos anos 20 garantiu um aumento da base eleitoral e uma crescente participação operária na vida política (Coggiola e Bilsky, 1999, p.55)

Por um lado, o sistema político brasileiro não passou por nenhuma reforma ao longo da Primeira República que ampliasse a participação política, mantendo-se mais excludente que seus congêneres, argentino e chileno; por outro lado, não ocorreu nenhuma campanha sistemática por parte da liderança operária no Brasil no sentido do alistamento eleitoral ou na naturalização do operariado de origem estrangeira. Apelos visando a participação no processo eleitoral, como o do Manifesto de 1902 ou do artigo de 1928 já mencionado, assinado sob o nome de Lavinsky, são exemplos de manifestações que ocorreram de forma esporádica, geralmente próximas à realização de pleitos, cujo resultado prático foi limitado.

No Brasil e na Argentina, particularmente antes da reforma de 1912 (Falcón, 1984. P 102), a opção pela naturalização não atraía o imigrante, tanto pelas características do sistema político, como pela perda de certa proteção que teriam na condição de cidadãos de países europeus. Além disso, é preciso levar em conta que o imigrante que tivesse como projeto o retorno à terra pátria dificilmente abriria mão de sua cidadania. O pouco interesse pela naturalização pode ser medido por diversos dados. Segundo estimativas de um funcionário italiano em 1906, 90% de seus conterrâneos no Brasil reuniam as condições necessárias para solicitar a cidadania brasileira, mas as naturalizações eram raras (Hall, 1975, p.405). Essa situação não pareceu mudar substancialmente com o passar do tempo, pois, de acordo com o censo de 1920, somente cerca de 1,5% dos estrangeiros nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo optaram pela cidadania brasileira (Maram, 1979, p.33)

Há ainda que acrescentar que as organizações de caráter político constituídas por imigrantes no Brasil, que poderiam exercer um papel de incentivo a naturalização, freqüentemente estavam mais voltadas para a política nos seus países de origem do que preocupadas em intervir na política brasileira. O caso do grupo socialista italiano que publicava o jornal Avanti!, em São Paulo, é paradigmático. Depois de buscar aproximações com os socialistas brasileiros e tentar influir no movimento nos seus primeiros anos de atividade, o jornal, fundado em 1900, com o passar do tempo, volta-se cada vez mais para a pátria de origem.

De qualquer modo, como esperar que os estrangeiros se naturalizassem a fim de poder participar do processo eleitoral ou buscassem interferir na política, se os próprios brasileiros que podiam ser eleitores mostravam pouco ou nenhum interesse no voto?

Mariano Garcia, em 1913, ao tentar explicar esse desinteresse do proletariado pela eleições, atribui parte do problema à “ação dos pretensos libertários”, acrescentando, porém, em seguida:

[...] devemos dizer, em nome da justiça e da verdade, que mais tem concorrido para o afastamento do operariado pelos seus direitos políticos [sic], a falta de seriedade de todos os politicantes que se tem guindado aos cargos de eleição popular, que faltos de idéia e de valor e mérito para conquistar essa posições, tem procurado transformar o sistema eleitoral em uma coisa desprezível em que não se respeita o voto, onde só se elege, com as atas falsas, os indivíduos indigitados pelos mandões dominantes, por sua vez também elevados pelos mesmos processos fraudulentos, indignos de quem se presa.

A clara percepção de que o sistema eleitoral era fraudulento tendia a afastara maioria dos eleitores potenciais, restando como participantes do processo aqueles que auferiam benefícios através de relações clientelistas com os chefes políticos, aqueles que de algum modo eram coagidos a participar e, finalmente, os poucos que acreditavam poder mudar a situação através da participação.

Outro aspecto a ser levado em conta era a maneira como as classes dominantes e os governantes brasileiros estavam acostumados a lidar com as classes subalternas: a repressão. Prisões arbitrárias, fechamento de associações, deportação dos estrangeiros, desterro para a Amazônia dos nacionais – ainda que a verificação da nacionalidade exata dos atingidos por esses dois tipos de medidas fosse falha – são parte do arsenal de medidas repressivas tomadas pelos poderes constituídos contra o movimento operário. Essa medidas tornaram-se mais sistemáticas depois das greves de 1917 e 1919, e atingiram seu ápice sob o governo de Artur Bernardes (1922-1926). Entretanto, a despeito da violência da repressão sobre o operariado no Brasil, esta mantinha-se menos mortal e ao mesmo tempo mais eficaz que sua congêneres na Argentina, particularmente no Chile, onde chegaram a ser perpetrados massacres de trabalhadores (Deshazo, 1983, p. XXIX; Hall e Pinheiro, 1983, p.5)

Todos esses fatores podem ajudar a entender as dificuldades e os obstáculos enfrentados para a constituição de um partido político socialista, tendo por base a classe operária, no Brasil da Primeira República. Todavia, nem isoladamente, nem em conjunto, esses fatores de fato explicam o fracasso desse projeto, pois basta olhar para o caso argentino para encontrar um exemplo mais bem-sucedido de criação de um partido socialista.

O único traço peculiar ao caso brasileiro, que não encontra paralelo em países próximos, foi o caráter geograficamente desconcentrado do movimento operário, com vários pólos distribuídos nas principais cidades brasileiras (sobretudo as capitais) e em algumas poucas cidades do interior de alguns estados. Ao longo da Primeira República, o movimento operário não conseguiu jamais uma efetiva coordenação nacional. As confederações, que em tese exerciam esse papel, tiveram uma existência mais nominal do que real, como a Confederação Operária Brasileira, de orientação sindicalista revolucionária, que nos períodos em que funcionou, 1908-1909 e 1913-1915, foi muito mais uma extensão da Federação Operária do Rio de Janeiro, limitada à área de atuação daquela federação.

Com os partidos operários a situação não foi diferente. Esses partidos, invariavelmente, atuaram apenas na escala municipal ou, em alguns casos, estadual, sem uma dimensão nacional. A única exceção a essa regra é constituída pelo Partido Comunista, mas mesmo, este começo majoritariamente composto por quadros da capital federal. Portanto, o projeto de cidadania operária, que marca os muitos programas dos partidos operários da Primeira República, esbarrou na falta de organizações adequadas – partidos consolidados – para levá-lo adiante.

A história da classe operária no Brasil, percorreu um longo caminho até a eleição de um dos seus membros à Presidência da República em 2002. Essa eleição por si não garante que uma concepção operária da cidadania passe a vigorar, mas nos deixa sem dúvida mais próximos daquilo que almejava o Manifesto de 1902.

Bibliografia:

BATALHA, Cláudio. Set. 1991/ago.1992. “Identidade da classe operária no Brasil (1880-1920); Atipicidade ou legitimidade?, Revista Brasileira de História, 12, (23/24)


BIONDI, Luigi, 2002. Entre Associações étnicas e de classe: os Processos de organização política e sindical dos trabalhadores italianos na cidade de São Paulo (1890-1920) Tese de Doutorado em História – Unicamp, Campinas

CARONE, Edgard (org.), 1979. Movimento Operário no Brasil (1844-1877). São Paulo. Rio de Janeiro: Difel.

CARVALHO, José Murilo de. 1987. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras.

COGGIOLA, Osvaldo; BILSKY, Edgardo. 1999. História do Movimento operário argentino. São Paulo. Xamã.

Confederação Brasileira do Trabalho (Partido Político). 1913. “Conclusões do 4° Congresso Operário Brasileiro, realizado no Palácio Monroe no Rio de Janeiro de 7 a 15 de Novembro de 1912. Rio de Janeiro: Typografia Leuzinger.

DESHAZO, Peter. 1983. Urban Workers and Labor Unions in Chile, 1902-1927. Madison, Londres: The University of Winsconsin Press.

FALCÓN, Ricardo, 1984. Lo origenes Del movimiento obrero (1857-1899) Buenos Aires. Centro Editor de América Latina

FAUSTO, Boris. 1977. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). Rio de Janeiro. São Paulo: Difel.

FOOT, Francisco; LEONARDI, Vitor. 1982. História da Indústria e do Trabalho no Brasil: das origens aos anos vinte. São Paulo. Global.

Geary, Dick. 1984. European Labour protest, 1848-1939. Londres. Methuen (col. “Univerity Paperbacks”)

Gitahy, Maria Lucia Caira. 1992. Ventos do Mar. Trabalhadores do Porto, Movimento Operário e Cultura Urbana em Santos, 1889-1914. São Paulo. Santos: UNESP. Prefeitura Municipal de Santos.

HALL, Michael. 1975. “Imigration and the early São Paulo working class”
------- Imigração e movimento operário no Brasil. Uma interpretação. 1990. São Paulo


5 comentários:

  1. Como você copia integralmente o texto original e cita uma bibliografia imensa, como se tivesse apoiado-se nesta?
    Um disparate...

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  2. Independente de ter copiado ou não parabens por esta publicação!!
    Texto maravilhoso, foi dado os devidos créditos e muito mais, elucidou muitas dúvidas a cerca dos trabalhadores e a esquerda brasileira, uma é uma e a outra é a outra!! Embora as duas se tenham seus pontos comuns, elas distingui-se em seus ideais: A esquerda quer governabilidade, enquanto o proletariado quer sustentabilidade e divisão de rendas.

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  3. Salvou minha vida com esse capítulo, obrigado. Irei lê-lo agora.

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